Eu estou sempre a querer que deus exista. Devia existir nem que apenas para isto. Um deus com uma missão precisa. (...)
A de nos permitir levar um carinho a quem amamos. Porque o amor sem anúncio de retorno torna-se o mais difícil dos amores. Mas é amor.
Vale sempre a pena e é, em último caso, o que justifica tudo.
valter hugo mãe
Vou chamar de Judite, pois este é o nome da mãe que perde o filho no texto do valter hugo mãe. Sim, letras minúsculas, como ele prefere, como mesmo nomeia deus. Não por falta de respeito. Mas por liberdade ortográfica, por fluidez da escrita, por simplicidade, pela utopia da democracia das palavras (todas devem ser iguais...) ou simplesmente porque “as pessoas não falam por maiúsculas”. Mãe, sobrenome, ele escolheu, pela ideia de gerar, de parir um encontro de palavras que compõe uma história, um verso, mesmo sabendo que nada se compara à experiência da maternidade.
Também valter hugo teve irmão morto e por assim dizer, tem uma mãe que perdeu um filho. Atendo a mães que perderam seus filhos, na guerra cotidiana da violência urbana. Tenho, na família, mães que perderam filhos muito jovens. Li o texto após ter feito uma visita a uma mãe que perdeu dois dos três filhos, a que chamarei Judite. Foi a versão mais verdadeira e humana do que sinto. A dor na alma e no coração completamente impossível de descrever é de alguma forma, nesse texto, desenhada e colorida com alguma tinta encantada que em vez de fazer chorar, faz sorrir.
E volto a Judite que vi, pela primeira vez, há cerca de dez anos. Ela já trazia a perda de um filho como marca. Vinha pelas dores, pelos cuidados com as doenças da velhice, sempre acompanhada pelo companheiro de vida. Com a dificuldade em vir na unidade de saúde, eu visitava o casal que sempre chamava “os meus velhinhos”. E ela sempre falava no plural: “a doutora mora no nosso coração e não paga aluguel”. Assim, pelo vínculo, essas visitas se seguiram e se seguem até hoje, mesmo com a minha mudança de trabalho, me desvinculando da instituição que atendia dona Judite e o marido.
Nesse meio tempo, dona Judite perdeu outro filho e há dois meses, o companheiro. A cada perda, que também coincide com alguma perda física ou com alguma dor nova, ela se reinventa e, de forma digna, mantém o brilho e a doçura nos olhos verdes, a alegria do vermelho que traz sempre nas roupas. Cor predileta, símbolo do time que o esposo torceu a vida inteira, o Internacional. A cada passo pequeno dela, minha admiração, meu respeito e meu desejo de aprender ao acariciar seus cabelos brancos.
Valter diz que o rosto de Judite nos é sempre familiar. Há sempre Judites nas famílias. Há mulheres que ele entende, para quem as conhece, parece, foram escolhidas para a dor sobre-humana, para a tristeza impossível, para a ausência sem cura e que, portanto, são vistas como sagradas. Esse sagrado é o que as aproxima, o que as identifica, o que as faz se parecerem. No entanto, ele afirma que é preciso, urgentemente, que reconheçamos o direito delas de serem normais: risonhas, cuidadosas, vaidosas, gulosas, enfeitadas e esperançosas...
Mas é com frequência que me pego em franca reverência silenciosa, seja quando arrumo sua mesa para o café, seja quando sento ao seu lado e olho fotos antigas, seja quando escuto suas histórias, seja quando ela, agora, se corrige, falando no singular o que antes falava no plural: “a doutora mora no meu coração e não paga aluguel”. Porque o mundo das pessoas sagradas é esse dos que fazem ninho e espaço de sobra no coração para abraços, doces e sorrisos francos. É esse mundo que perde, mas oferta de si. Perde, mas celebra a vida pelos momentos leves que pode acarinhar.
Há uma celebração não só da própria vida vivida, mas da vida que se foi com o outro e da vida do outro que se foi. No texto, valter hugo entende que se lembrar é uma forma de presença, uma forma de sentir, é uma forma de ter, uma forma de dar vida. Vale a pena resistir à dor, trazer a alegria de volta. Porque essa alegria ainda que pareça, não é esquecimento, mas é o caminho que conseguimos percorrer a partir de lembrança, saudade, presença e ausência. Sorrir ao lembrar é celebrar a si mesmo, é homenagear quem partiu, mantê-lo vivo.
E lembro de minha mãe contar da recente reunião de três mães da família para celebrar o aniversário de uma delas. Também chamarei esta aniversariante de Judite... Elas sentaram e viraram a noite contando histórias, piadas, lembrando e rindo. Rindo das festas, das brincadeiras, das frases e das presenças. Celebraram a si mesmas e celebraram a sempre presença dos que tiveram junto. Festejaram minha avó e a fizeram viva e se o deus de valter hugo mãe existe, acarinharam minha avó, com o amor mais exigente e este sim, sagrado.
Assim, na saída, dona Judite sempre insiste em me deixar na esquina do seu prédio. Vamos de braços dados. Segura uma cadelinha branca que ela acaricia tal qual arruma seus cabelos de cor igual. Nos despedimos e após alguns passos, olho para trás. Ela parece confusa e toma o rumo contrário. Retorno. Ela me diz, sem jeito, que quer fazer outro caminho. Finjo que acredito e oriento que é melhor voltar pelo caminho mais curto. Ela sorri, consente e volta por onde veio. Nos despedimos novamente. Fico cuidando dona Judite indo para casa, se afastando até virar um pontinho vermelho, virando a esquina, onde está a portaria do prédio.
Desta vez, dei a ela um lenço cinza claro com pássaros coloridos, de tons suaves, para colocar no pescoço. Quando a vi, de longe, imaginei meu presente na distância. Os pássaros delicados com as cores e tons da sua pele, do seu cabelo e da sua alma cor de rosa. Imaginei, por segundos, que esses pássaros poderiam sair, poderiam voar com ela, na leveza dos passos, do olhar. Diferente do que se pensa, eles, os pássaros aprenderiam com ela, como sempre aprendo. Ela os ensinaria a voar, como me ensina a viver, a celebrar e a ter certeza de que valeu e vale a pena.
http://www.publico.pt/portugal/noticia/judite-1662321
[Maria Amelia Mano publica na Rua Balsa das 10 às terças]
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