12 agosto 2014

Mural de Versos [maria Amélia Medeiros Mano]


Mural de Versos

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
Leminski

                A semana que passou parece que teve 14 dias e as horas dobradas pesavam na alma e nos ombros: o peso de um mundo inteiro. Peso de pacientes difíceis, de processos injustos, de inocências perdidas, decepções e um certo desalento por alguns esforços não serem reconhecidos, algumas esperanças frustradas e alguns sonhos de mudar mundo não serem realizados.
            Desço do ônibus e saio, como de costume, caminhando pelas ruas da comunidade. São quase 10 quadras que caminho até a unidade de saúde que trabalho e sei que minha função já começou antes mesmo de bater o cartão. Passo pela frente da casa da Lúcia e ela me grita: “tu passa sempre de cabeça baixa, né!?”. Entendo como uma brincadeira, como se eu não quisesse olhar para os lados, para a casa dela. E Lúcia continua: “Amanhã eu vou te ver!”.
            Chego na unidade e na minha salinha. Fiz um mural de fotos de algumas crianças em que fiz o pré-natal. Notei, certa vez, que estar no mural era, de alguma forma, motivo de disputa e que as mães comentavam quem estava, quem não estava. No começo eu batia as fotos. Depois, espontaneamente, elas me traziam para eu incluir ou atualizar as antigas. Isso sem falar dos convites de aniversários de 1 ano ou os outros filhos que “são também lindos”.
            Ainda, uma vez uma mãe em que fiz o pré-natal do bebê, apontou para uma foto e me disse: “aquele pé deu até briga!” E quando eu perguntei por que, ela me disse que uma outra mãe que também fiz o pré-natal da filha disse a ela que aquele pé no mural da sala da doutora era o pé da filha, sendo que a que me falava sabia que era o pé da sua filha e não da outra. Confusões de pé a parte, revelei quem era a “Cinderela” para ambas de forma delicada para não magoar. Aprendi que é muito especial ter algo pequeno do que se orgulhar, algo delicado que mais alguém além de nós, dá importância.

            Mas voltando...

            Acompanhei Lúcia por 6 meses em um tratamento para tuberculose. Algo difícil para uma paciente etilista, com hepatite C e uma ansiedade que só alivia com um cigarro de maconha. Brigamos e brincamos muito. Quando as coisas não melhoravam, iniciei uma outra investigação que terminou em um diagnóstico de linfoma. Vi Lúcia perder e ganhar os cabelos. Também acompanhei quando recaiu, quando quis desistir, quando persistiu e quando fugiu com um namorado antigo que reapareceu. Quando começou a se pintar e se enfeitar, de novo.
            Fiz o pré-natal da filha da Lúcia. Ana, menina mãe de 17 anos que enfrentou a gestação complicada e a falta da mãe, doente e atrapalhada, a violência do companheiro usuário de crack, a falta de comida na mesa, o cansaço do trabalho braçal. E acompanhei toda a gestação de Ana até a chegada de Maria. Maria, menininha de olhos bem pretos, duas ameixinhas brilhantes e sorridentes. Xodó de Lúcia que interfere na alimentação e nos mimos como toda avó.
            Ana passou por um período difícil em que era agressiva com Maria e se sentia culpada. Não queria gritar. Chorava com a criança que berrava no peito. E quando menos esperamos, no meio da tristeza e da exaustão, ela olhou com olhar de mãe e menina, admirou a pequena Maria e pediu que eu trouxesse máquina para bater fotos para colocar no meu mural. Entendi, de novo, a importância do mural. O lugar de se reconhecer e de reconhecer o filho, de mostrar, de deixar de ser menos anônimo. Lugar de assumir, de pertencer.
            E em um fim de dia exaustivo, na semana de horas duplas, entram na minha salinha, Lúcia, Ana e Maria. Lúcia com suas dúvidas em relação aos exames feitos pela oncologia: “não entendo o que eles dizem”. Ana me pedindo um atestado porque machucou o punho no trabalho de doméstica. Maria só nos observando com seu olharzinho. Já calminha, com a melhor roupinha, passando, acarinhada, entre os dois colos.
            E Lúcia volta de novo com a brincadeira da cabeça baixa. Ana, então, pergunta: “Por que que a doutora anda de cabeça baixa?”. Na verdade, nem tinha percebido e devolvi a pergunta: “E eu ando de cabeça baixa?”. As duas respondem que sim em coro. E Ana, completa: “Não faz isso não! Anda de cabeça erguida!” E Lúcia termina, dizendo: “ela tá é ali, caminhando e pensando na vida...”. Fico surpreendida com a atenção, as ideias e o conselho. Sorrio e olho para elas entre feliz e grata e lhes digo que vou prestar mais atenção e vou procurar andar de cabeça erguida.

            Caminhar é lição de dias, de trajetos, de histórias. Penso no pé da menininha que vi o coração bater quando nem a conhecia e penso que ele me protege os passos, em um mural que humaniza minha sala, que enfeita minhas tardes cheias, que torna cada sorriso, cada carinha um verso de um grande poema chamado vida. A vida que insisto em ser parte, em ser parceira ou, ainda, comparsa, como um dia Lúcia me diz: “tu virou minha comparsa”, como quem vira cúmplice do grande crime que é resistir, acreditar.
            Se olho para o chão, Lúcia, Ana e Maria e o pezinho me lembram que devo erguer o rosto, não por orgulho, por prepotência, mas por dignidade. A mesma que me faz baixar os olhos e perder o sono, a mesma que me faz insistir ou desistir, mas acima de tudo, existir. A mesma que me faz comparsa: criminosa julgada e condenada à liberdade de expressar sua indignação, sua crença, sua dúvida e seu sempre desejo de fidelidade ao que considera justo. Sem álibi, sou conivente e membro de quadrilha cujos parceiros disputam de forma terna e humilde um lugarzinho visível no mural de versos.
            E que esse poema seja de todos os pezinhos e todas as pequenas revoluções de todas as caminhadas, foragidas, libertas, sonhadoras e esperançosas. Que nossos esconderijos sejam as ruas e que elas estejam pintadas com o humor da Lúcia, a força da Ana e o brilho dos olhos curiosos da pequena Maria, descobrindo o mundo, aprendendo a ganhar, a perder e daqui a um tempinho, a caminhar.

[Maria Amélia Mano pública na Rua Balsa das 10 às terças feiras]


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