Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
(...)
Tens a medida do sonho?
Tens o número do tempo.
(...)
Sabes ainda meu nome?
Hilda Hilst - Cantares
Por que Dona Beca? Porque desde
pequena era faceira e vaidosa, gostava de andar arrumada, na beca. Ela foi uma
das primeiras moradoras da Vila Dique na parte da estrada de chão. Reunia as
mulheres, lutou por água, luz, ensaibramento da rua e foi uma das fundadoras do
Clube de Mães Margarida Alves. Como tantas outras, ensinou e aprendeu cursos de
corte e costura, tricô e acolchoados. A
luta do clube de mães permitiu a conquista da Creche Galpãozinho, da Escola
Municipal Migrantes e da Unidade Básica de Saúde Santíssima Trindade. Dona Beca
juntamente com outras mulheres da comunidade confeccionaram os primeiros
lençóis e almofadas da Creche Galpãozinho. Trama, tecido, bordado, agulha,
linha colorida que une, costura retalhos de lutas, sorrisos desenhados na escuridão
cor de esperança.
Quando se passava pela Avenida Dique
nem se sonhava que no meio do barro, da escuridão dos becos, do cheiro do valo,
existia bordado, desenho, costura, ternura. O que vemos é tão somente o limite
do que os nossos olhos conseguem alcançar diante de tantos enganos, distorções
e preconceitos. Na saúde, impõe-se a ideia inquietante de risco, com as misérias,
insalubridades, violências, ignorâncias e outras pestes que historicamente,
devem sofrer intervenção, salvação e limpeza. Com o pressuposto de que devemos
nos proteger da velhice na juventude, da morte antes do nosso tempo, do raio,
da tempestade e da doença, está a justificativa de que se pode e deve controlar
o que virá, o que deve vir. O projeto de modernidade exige critérios matemáticos
de ganhos e perdas, anos perdidos de vida, gestão dos riscos, gestão de vidas.
Na sociedade do risco, o homem é dono
de seu destino, sim, mas deve fazer escolhas e gerenciar diversos fatores para
viver mais e melhor. Nada de novidade, mas quando as buscas, as intervenções
sobre as vidas e os julgamentos se pautam em riscos, o dano é o primeiro olhar,
o ruim e o sujo é o primeiro foco. Pensar em saúde é mirar manchas de mofo nos
alimentos, larvas de mosquitos nas águas, a ausência de janelas no quarto e o lixo
nas ruas. Assim, a vila passa ser o lugar do fracasso das tentativas de
higienização, o lugar do improvável. Lugar de tantos riscos que, dele, pouco se
deve esperar, muito se deve intervir tal qual missão de seres mais fortes e
sábios.
Na Dique, além de tudo, havia a
irregularidade das moradias e a precariedade do trabalho. A irregularidade que
resultava na ideia de provisoriedade, justificava o não investimento, a não
tentativa. Delegava-se, assim, aos moradores, o papel de excluídos por serem
parte de um território temporário. O transitório era a razão para se manter um
ciclo de não possibilidade, de não esperança, de diversos “nãos” que desconsideraram
cultura, laços, sentimentos, trajetórias, vidas vividas e saberes valiosos ao
que entendemos como resiliência, luta, heroísmo, amorosidade, solidariedade.
Quando projetos sociais apostam em
geração de trabalho e renda estão fazendo algo valioso, sim, mas limitado. Para
além do direito à sobrevivência, há o direito ao sonho, à esperança, ao
reconhecimento de belezas e potencialidades. Há o direito de ver o jardim no
pátio, a bergamoteira plantada na frente da casa, o cuidado da mãe para com os
muitos filhos, seus e dos vizinhos, o esforço do idoso carregando carrocinha de
papel para a reciclagem, a música da festa para juntar recursos para a creche,
o pão fresquinho que sai da fornada da padaria comunitária, o riso das crianças
que brincam, o gesto de carinho para com o animalzinho de estimação, a rega da
plantação, o cuidado com os mais frágeis, o brinquedo, o batom, o enfeite no
cabelo, o jarro de flores na mesa posta, a canção, o riso, o risco... sim, o
risco de giz no algodão que guia a linha colorida quando as mulheres bordam...
Sobreviver simplesmente sem a presença
do belo, do que canta, do que nasce, do que espera, do que germina é a
verdadeira forma de condenar à exclusão. É negar ao outro o direito de
encantar. É sentenciar o desencanto, o desencontro, o desespero. É tornar tudo igual,
com resoluções iguais, de mesmas respostas e é dissolver a pobreza, a doença, a
miséria, a tristeza a um corpo único sem história, sem nome, sem rosto, com os
olhos disformes perdidos no meio de muitos, tornado número, nada. Nada que se
mantém resto para os que passam desavisados, desacostumados com os jeitos de
espreitar pequenas fagulhas de cor, de dor, de força, de céu cheio de aviões e
estrada de chão, com pessoas que constroem, com o suor do dia, mais um dia,
mais outro dia e noites de cansaço, esperanças e sonhos.
Cheios de verdades, temos sede de
encontrar a beleza escondida entre as tábuas. Temos necessidade de aprender a
olhar o jardim por entre as frestas.
Atingir o
possível. Encontrar beleza é entender o tempo de cada lembrança, de cada
história. É entregar-se ao cotidiano de lutas, sem certezas, mas aberto às
desintegrações, mudanças de rumos, invenções, criações que se fazem em torno
das famílias que se renovam, compartilham pequenos grandes momentos de muitos
mundos. Desafio solene, árduo e diário de enxergar cores, linhas de vidas que
se entrelaçam tal qual bordado. Fazem uma toalha de abrigar alimento de corpo e
alma.
Os rostos com nomes, as mulheres
muralhas se tornam vivas nos varais e pátios, nos aprendizados e nas
esperanças. Nesse pequeno universo onde
o risco é o de giz no algodão para bordar, a Dique passa a ser lugar possível,
lugar de vida, de construções, de beleza, de felicidade, de saudade. A Dique se
faz bela e se faz única. A Dique se torna exemplo, busca, referência, escola.
Escola onde se planta e se colhe e onde nada se faz sem luta.
Com o Projeto Memórias da Vila Dique
estamos todos convidados, não só a não esquecermos a Dique, seus sustos e suas
lições de vida, mas a ressignificar as ditas coisas humanas e sociais que que
têm alma. Alma que se sente na utopia de uma construção conjunta, de um desejo
de reunir, diminuir a fragmentação instituída pelas remoções. Lembrar que as
remoções foram feitas “em salvas”, aos poucos, desfazendo laços, deixando escombros,
criando vazios. No reassentamento, aos poucos, as mesmas pessoas se reencontram
em outros lugares, outras calçadas, outras relações e novos desafios.
Reconstituir, nas rodas de memórias, o jeito de contar a vida pode ser um
caminho novo de alinhavo, costura de dias mais inteiros. Dias ainda exigentes
em demandas reais: a casa mal acabada, a correspondência que não chega, o
contrato que não se assina, a prestação que não se consegue pagar...
E continua a imprevisível trajetória
de uma comunidade que certamente não aparecerá no noticiário como parte da
história do megaevento da Copa do Mundo de 2014. Como tantas remoções em nome
do progresso e do brilho de empresários, os silêncios necessários são
pactuados. Ao mesmo tempo em que outras histórias ganham alma nos aprendizados
de bolsistas, nas partilhas com outros setores como a Arquitetura e o Direito.
Relações vivas que mudam destinos, formam outros profissionais mais sensíveis,
mais humanos e essencialmente, que possam ver o risco de giz no quadro negro da
escola, o risco da tinta spray do grafite no muro, o risco de lápis nos olhos
vaidosos, o risco na areia das crianças que brincam, o risco de caneta do
adulto que aprende a ler, o risco de fumaça de avião no céu, o risco de tinta
que a criança desenha no papel, o risco do algodão quando as mulheres
bordam...
Frágeis em tantas ausências,
especialmente a do Estado que, responde à remoção com o discurso da cidadania
resgatada, a noção de vulnerabilidade social, mais que a de risco, pode ser a
forma mais justa de entender a realidade da Dique. No entanto, para
profissionais de saúde, mais importante que as nomeações, que as numerações, as
quantificações, os dados e os diagnósticos está a urgente necessidade de
refinar a busca, orientar o olhar, apurar a escuta para o que entendemos ser
potencialidades em saúde. Listar problemas é fácil, habitual, quase mandatório,
mas como é custoso encontrar belezas! O quanto aprendemos, da nossa noção de
saúde, que ela é constituída de possibilidades, presenças, caminhos, sorrisos,
descobertas que se fazem, às vezes, no escuro. Afoitos em dar títulos,
esquecemos que nem todas as flores são visíveis e nem todos os avessos de
bordados são admirados na sua mágica função de segurar o lado oposto. O quanto
precisamos do caos dos nós do avesso para sustentar o visível. O quanto as
cores se misturam sem fazer desenhos certos, mas por isso mesmo fazem a eterna
pergunta: o que está do outro lado?
Sem medida certa, como o infinito, o
sonho, o tempo, o nome, a alegria, vai se aprendendo a bordar uma outra Dique
em que o cotidiano e sua sempre presente surpresa emprestam a linha mais forte.
No verso do tecido, as linhas soltas afirmam que não há uma estrutura formal
para o acontecer e tanto quanto os versos mais raros, a vida também se faz de
avessos. Na aparente loucura do avesso, o emaranhado de linhas tantas quanto os
fios das instalações precárias e clandestinas de luz. No desenredo, no
desarrumado, o caminho para a compreensão de uma dinâmica que assusta, mas
encanta porque é feita de verdades, de pessoas de verdade, com vidas que não
podem ser rotuladas, fichadas, controladas sob qualquer pretexto. Muito menos o
pretexto da saúde e do cuidado. Na arte do avesso, um outro bordado esquecido,
tão descabelado, inusitado e mágico como a própria vida. Não puxe os nós, não
corte as linhas, apenas admire com olhar de escolha, com olhar de pergunta, com
olhar de cuidado e esperança.
(texto
adaptado do original do mesmo nome, publicado em: Da Vila Dique ao Porto Novo)
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