10 novembro 2015

ESSAS COISAS VIVAS III


Maria Amélia Mano

               Amor é prêmio, consolo, sonho e passo para a felicidade. Guimarães Rosa diz: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” No caso deles era busca, intensidade, pouquinho de saúde, sim, e descanso, sim, na e da loucura. E na sombra da loucura, resolveram viver esse amor, como quase todos os recém amantes e recém amados vivem. Ainda mais quando foram pouco amados.

                Cada vez mais Helena e as surpresas de ser quem é. Recaída e recomeço. Grupos terapêuticos no CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) para se manter limpa. Entre lutas contra si mesma, conhece Antônio. Ele com história parecida: perdas, fundos de poço, recomeços, recaídas e novas chances. Helena fala de amor demais, amor que merece ter como prêmio por tudo. “Agora é de verdade”, diz ela, sorrindo.

                Relação de 4 meses. Antônio vai morar com Helena. Antônio assume o filho menor de Helena, João. João pede para ele ir na festa do Dia dos Pais da escola. João, que teve pai ausente, canta no coral e faz desenho para Antônio. Ambos choram e se abraçam. João resgata o pai que não teve. Antônio resgata os filhos que perdeu para o crack. Helena sonha, sempre sonha: “vou ter outro filho.”

                Helena tem 41 anos e é soropositiva. Falta a menstruação. Dois exames negativos. Não quer fazer ecografia. Tem certeza de que está grávida. A barriga aumenta. Os seios incham cada vez mais e doem. Helena diz que dos seios, sai leite. Antônio e João, felizes. A psiquiatra do CAPS-AD me liga preocupada, Helena insiste na gravidez e não ouviu as recomendações de proteger o parceiro sorodiscordante. Provas de amor.

                Não me preocupo. Não desfaço sonho. Sei que ela vai voltar. Sempre volta. E voltou em dia de chuva, mais magra e bonita. Turbante colorido na cabeça: obrigações da religião. Rezas no altar de casa com Orixás e oferendas. Diz que vai voltar para o CAPS-AD. Sente falta dos grupos, das pessoas queridas. Reconhece que não está grávida. Não sabe se ainda quer ser mãe novamente. Não sabe se é mesmo “de verdade”, como acreditava.

                Antônio recaiu. Sumiu. Se escondeu. Mentiu. Roubou o celular novo de João para “queimar”. João mentiu para Helena para proteger “o pai”: disse que emprestou para Antônio e que ele perdeu. Helena não admitiu a farsa. Fez Antônio confessar e prometer que vai dar celular novo para João. João chorou. Helena recaiu e no meio de seus anjos e demônios, pensou só que “de verdade”, a dor é mais certa e presente que o amor.

                Mas o amor, esse amor rosiano, que é saúde e descanso? Penso em Helena. Reconheço que qualquer amor já é muito, mas se for “qualquer”, é pouco. É um pouquinho de saúde, sim, por um tempo, mas nem sempre é um descanso na loucura. O amor pode fazer parte da loucura e descanso mesmo é quando a gente se reencontra, seios grávidos, de verdade ou de sonho que é de verdade, mas prontos para nos parir, nos fazer renascer.
    

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