03 maio 2016

FINALMENTE



Maria Amélia Mano



Para todos os jeitos e tempos de ser mãe.
               

                Não sei muito da história. Como começou a entrega, o vício, a prostituição. Lembro quando fiz o diagnóstico do vírus. Lembro quando Cátia se orgulhava da abstinência e quando confessava a recaída, quando contou que roubou só uma vez de um cliente: 50 reais soltos do bolso da calça. “Tentação demais!”

                Vi sorriso quando me disse que estava amando muito. Companheiro que não tem filho. Cátia querendo dar presente de amor. Cátia querendo engravidar sem conseguir. Cátia e a sentença de que tinha que tirar o útero, lesão expansiva que avançava para os pequenos lábios. Espera de um ano até que a dor veio e o medo de sofrer ganhou.

                Então, Cátia chega com ar de cansada... Quer o encaminhamento para a ginecologia. Aceita a sentença dada há um ano, sentida há uma semana. Dor. Precisa estar bem, quer novamente a guarda dos filhos que está com a mãe. Mas a mãe está doente e pouco cuida de si mesma. Agora é a hora dela. Ela, agora, pode e quer.

                Quando me confessa medo, lembro de tanta coragem. Coragem na rua, nas “bocas”, nas esquinas, coragem de parar com a “pedra”, coragem de olhar com humildade para os filhos que perdeu a guarda e de querer resgatar, de querer ser mãe de novo, de cuidar da mãe, de querer cuidar de si. Ser filha e mulher. Cátia erguida. Finalmente.

                Então, Cátia lamenta o filho que queria ter. Desejo de cuidar outros filhos nascidos em tempos de escuridão. Amor que clareia. Clarão que ilumina a alma cheia de medo. Eu, sem a pretensão de negar o futuro, mas de ajudar a fazer do tempo, esse presente de vida, essa possibilidade de abraço de encontro e perdão. 

                Papéis para exames e para o especialista. “Alta prioridade”, escrevo. Remédio para dor. Cátia diz que o companheiro não tem o vírus como o companheiro anterior também não teve. “Acho que só recebo, mas não passo”, diz ela, orgulhosa de não fazer mal a ninguém. Sorri, com uma culpa a menos. Uma esperança a mais: milagres acontecem.

                Cátia tem 30 anos nas mãos, mais de 30 meses sem o crack e quase 300 anos de histórias na lágrima que, pela primeira vez, vejo cair. Abraço. Certeza de que estarei ali para quando precisar voltar. Ela vai voltar, sei, como sempre, com ar de menina que brinca com a vida, essa que vale viver quando se é amada e ela é, apesar de tudo, depois de tudo. Finalmente.
                 

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