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Árvore no entardecer o pantanal - Ronaldo Ávila (2007) |
Ernande Valentin do Prado
PARTE 1
Todas as vezes, desde
que comecei a me lembrar, a história termina do mesmo jeito: eu morro. Não
(essa não é a palavra certa) a história terminada sempre com você me matando.
Nem sempre faz isso de frente, olhando nos meus olhos, dando-me a chance de me
defender. Muitas vezes matou-me pelas costas, na traição, em emboscada,
enganado, traído. Já atirou no meu peito e deixou meus restos para os animais,
me esquartejou, queimou, pisoteou com cavalos, atropelou com caminhão, esmagou
em desmoronamento de mina de prata. Já me envenenou, deixou-me morrer de fome,
bem lentamente, todo dia. Também de sede, de diarreia por água sem
tratar...
Mas volto sempre. Você
também!
De verdade não sei
quando foi a primeira ver que me matou. A memória é uma coisa esquisita, mas é
a única verdade que importa. Claro, não falo da verdade dos historiadores, todo
mundo sabe que a verdade depende muito da sinceridade com que se consegue olhar
para si mesmo, encarar seus defeitos, virtudes, medos, hombridade, imperfeições
mesquinhas. Falo da verdade que só conhece quem a viveu, como nós.
A PRIMEIRA MORTE
A primeira vez que você
me matou foi em uma caçada à raposa. O dia estava frio, mas de sol claro,
bonito. Você era o senhor das terras, montado em seu cavalo murzelo, com a
comitiva de caçadores, cães e servos. Usava botas pretas de couro, cano alto
para não ferir os pés. Ao seu lado, em um cavalo pequeno, vinha sua futura
esposa, Irina, de 16 anos, filhas de uma família nobre, vizinha da propriedade
senhorial.
Eu corria descalços
pela mata, sem folego, tinha os pés feridos, os lábios rachados pelo frio.
Junto aos cachorros, enxotando a raposa em sua direção. Um fim inevitável.
Você estava atrás de
arvores frondosas, no final da clareira, num terreno elevado de onde poderia ver
quando ela aparecesse. A raposa deveria seguir o seu plano e entrar no terreno
e ser facilmente abatida. Mas ela me enganou, enganou os cachorros, fez seus
próprios planos de bicho livre, dona da própria vontade e deu a volta sem ser
notada. Você queria impressionar a noiva, que usava um vestido rosa, mostrar
como era bom de mira, dar um tiro certeiro e lhe oferecer à pele avermelhada do
majestoso animal.
Ficou furioso quando a
raposa não apareceu, quando viu que não cumpriria sua promessa à futura esposa.
Atirou no meu peito, quando sai da mata no lugar da raposa. Acertou pouco
abaixo do coração, dando-me algum tempo para perceber que estava morrendo.
- incompetente,
molenga, imprestável, como uma raposa pode enganar um homem? Você gritava
enfurecido.
Quando o tiro me
acertou, não dei conta na hora, apenas percebi o impacto no estômago, como um
soco muito forte. Sei porque antes já havia me esmurrado assim. As vistas
escureceram, senti as pernas amolecer, os braços perder as forças, senti um
gosto amargo na boca, respirava com dificuldade.
Você desceu do cavalo,
a moça de vestido rosa, sentada de lado na cela, ficou montada, olhando-me
sangrar, mas indiferente.
- Imprestável, você
repetiu com olhos de ódio.
– viu o que me fez fazer, seu patife? Ao menos
não foi um dos cães treinados, isso sim seria uma perda de valor.
Imagino que perguntei
por que, mas não tenho certeza. Você continuou gritando, rosto vermelho,
exaltado, culpando-me por não acertar a raposa:
- Oras, insolente, onde
já se viu questionar seu senhor!
O rosto estava
transtornado, furioso, sentia-se ofendido em seu direito de senhor das terras,
humilhado na frente de sua futura esposa.
- Insolente, insolente,
gritava descontroladamente.
Outros caçadores e
servos chegaram, rodearam meu corpo, tentaram me amparar, mas você berrou do
alto do cavalo, já se retirando:
- Deixa esse
imprestável aí para os animais selvagens matar a fome.
Bateu com os
calcanhares na barriga do cavalo e partiu.
O ano era 1.808,
estávamos na Rússia feudal preste a ser invadia por Napoleão. Eu tinha 16 anos.
Levei mais de 40 minutos para morrer, foi a primeira vez.
Meu sangue encharcou a
terra e atraiu animais, que me devoraram completamente em três dias.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
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