Maria Amélia Mano
PERSISTIR, EXISTIR
É
recomendado que psiquiatras e psicólogos façam terapia, mas nada se diz para
médicos de família e profissionais da atenção primária, sendo que mais de 70%
das situações que acompanhamos tem um componente emocional. E vamos seguindo
dos nossos jeitos, desabafando com amigos na leveza do bar da sexta feira, da
música ao vivo e da cerveja. Cinema, arte. Cada um com suas buscas. Lemos e
conversamos nos corredores sobre o que nos inquieta.
Corredor
e boteco são salas de aulas possíveis em um universo que, parece, não nos dá
mais a possibilidade de buscar nos livros porque nos livros não há o que
vemos... Porque as pessoas não se apresentam com dores únicas, elas chegam
repletas de dores e de dores que se misturam com as vidas, dores de vidas,
vidas doídas emaranhadas na dor na perna, nas costas, na cabeça, no peito...
Raio X não dá
conta de diagnosticar e Paracetamol não dá conta de aliviar. E são muitos,
tantos que chegam, todos os dias, assim, sem nem saber onde dói, sem nem saber
por onde começar. Discursos desconexos e confusos, distantes das anamneses de
livros. Viagem de aventuras por mundos outros. Cheia de riscos. Cansativa,
exigente. Nessa viagem podemos desgostar, desaprender, desistir, não de um ou
dois pacientes que nos desafiem, mas de todos, de tudo, inclusive da nossa
humanidade.
A humanidade
está em ameaça constante em tempos de produtividade, de ficções de redes
sociais, de sucessos medíocres, de causas supérfluas, de polaridades, discursos
preconceituosos e intolerantes, tantas violências, corrupções que não são só
desvios de dinheiro, mas de oportunidades, de escolas, de vacinas, de moradias
dignas. Para seguir, manter a atenção, manter o esforço de compreender, manter
a curiosidade, manter a ternura e a esperança...
Manter
a sanidade. Não só, mas ganhar, aprender. Aprender a ouvir, a fazer a pergunta
certa no momento certo, aquele momento de pausa da respiração em que os olhos
baixam e as defesas caem, as amarras se soltam e os braços até se erguem, agradecidos,
para um abraço. Isso é quase como ver um refugiado conseguir atravessar uma
fronteira, é quase como cruzar uma linha de chegada após quilômetros de
caminhada, é quase como dor de parto que cessa com choro do novo que nasce.
Isso é vitória grande, alívio, fim e recomeço.
Assim,
seja porque motivo, não culpo quem não consegue seguir, quem não consegue se
manter são, seja pontualmente com esse ou aquele, seja no todo, na vida. Nem
todos sabemos, queremos e podemos desenvolver habilidades, superar cotidianos.
Nem todos estamos dispostos e, sim, podemos ser necessários e brilhantes em outros
lugares. Isso é ofício danado de desgastante, de sério, de intenso e se assim
não for, não é. Então, ou se sofre ou se desiste, sabendo que esse sofrimento é
também desafio e desejo de superar, desejo de fazer sorrir e aliviar.
Mas se “não
tem jeito”, é hora lúcida de poder rever e mudar. Não continuar engrossando as
filas de desumanidades. Logo médicos. Gostaria imensamente que fosse, para
muitos, permitido um dia para reavaliar, para decidir, para mudar de rumo. Uma
certeza de que não perderia dinheiro e prestígio, a casa ou a família, os
amigos. Isso seria uma fábula, quase. Cantinho do pensamento em nuvem. Não
existe, eu sei. Mas estou certa de que se existisse, mais de 50% dos médicos
desistiriam. Talvez mais.
No entanto,
seguem vendendo tempo, perdendo a vida e tornando triste o cuidado e esse
ofício que deve ser amado. Pode cansar, pode lastimar, pode sofrer, faz parte.
Mas não pode deixar de respeitar. Não pode ser de qualquer jeito e tratar um
ser humano como qualquer um, tendo qualquer coisa, cujo tempo gasto para
entender é qualquer um ou quase nenhum. Isso não é escolha, é caminho ruim de
sofrer e fazer sofrer.
Mas,
se depois desse tempo nessa nuvem imaginária de novas decisões, a opção for
permanecer. Aí é seguir nesse vício. É ter história pra contar e ganhar
chocolate quando se começa a dieta (justo hoje!), é ganhar foto e fazer foto,
ver nascer, ver crescer, ir pra escola e ver florescer. É sentir o primeiro
movimento e acolher quando se despede pra sempre. Mas é ofício pra se fazer
junto, pra se dividir, em equipe, com gente que também nos acolhe e aceita, com
tudo de bom e ruim que temos, com nossos demônios e anjos. É ofício que nos faz
mais gente e se assim não for, não é.
Não
precisa ser para sempre. Mas se for para ser hoje, que seja com vontade, com
desejo. E que venham as conversas divertidas entre pares, entre música, entre
pessoas que vivem seus tempos com a beleza de poderem seguir o que acreditam.
Isso é raro. É coerência de caminho. É prêmio de escolha de alma e coração. É
vida rica, ganha, significativa. É brilho no olho todas as manhãs e, sim,
cansaço, nas noites. Que os sonhos embalem e nos embalem sempre, em lutas de persistir,
existir, continuar sendo, nos mais diferentes modos de ser.
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