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Colagem de fotos, 2017. |
Ernande Valentin do
Prado
A cidade partida
Icaraí, Niterói, Rio de Janeiro. No mapa é só
um nome. No lugar é outra coisa. Bairro de gente fina, diz meu comparsa:
- Ainda estou aprendendo a morar aqui, mas
estou gostando.
Calçadas limpas, ruas seguras, pessoas
educadas, atenciosas lhe atendem no comercio. Por outro lado, tudo é muito
caro. Quinta-feira à noite começa o fim de semana, ruas, bares lotados até
tarde, definitivamente é outro mundo.
No domingo pela manhã estamos na porta da
igreja católica, uma construção modernosa, pós concílio Vaticano II, explica
meu camarada erudito. A procissão de entrada vai começar e a música é cantada
por um coro quase gregoriano. Coisa linda, mas lembra de novo que até a missa
nos bairros dos endinheirados é outra coisa.
Depois, na cidade do Rio de Janeiro, em um passei
turístico, passo em frente à igreja da Candelária e lembro dos meninos
chacinados em sua porta. Mesma religião, mas cada igreja parece ter um deus
aproprio aos seus destinos.
Visita a Feira do Canto de São Bento
Feira linda. Cada vendedor é também o produtor
de seus artesanatos. Pessoas educadas, atenciosas, com um papo bom. Fico
andando de um canto para outro, de uma barraca para outra, fotografando,
filmando por não confiar inteiramente na memória. Ao mesmo tempo tentando
escolher presentes (como isso é difícil).
No coreto um grupo enorme executa chorinhos,
que meu comparsa erudito diz ser com perfeição. Eu não sei nada de chorinho,
não percebo nada (e nem vontade chorar tenho, apesar de uma tristeza me
acusando por não me divertir como deveria, por não achar nada tão bonito
assim).
Para eu chorinho é coisa de intelectual e eu
sou mais povão mesmo, fico imaginando um show do Sepultura naquele coreto,
naquela praça frequentada por gente cheirosa e bem vestida.
O museu de arte do Rio
O MAR, Museu de Arte Contemporânea, que
visitamos em Niterói, é lindo. Obra de Oscar Niemeyer, coisa linda,
maravilhosa. Mas que me perdoem os amantes da arte, não precisava ter exposição
nenhuma, muito difícil concorrer com a arquitetura, com o visual da baia de
Guanabara. Ou, talvez, era só uma exposição feia mesmo, não sei dizer, não
entendo nada de arte, só sei dizer se gosto e se não gosto.
Rodei o museu, vi as obras. Depois deitei no parapeito e fiquei deslumbrados olha
o visual da baia, a geografia desenhada por Deus. Nas pedras três garotos se
banhavam na água suja e apesar disso linda. Só sai do transe com o segurança me
dizendo para levantar.
Novos baianos
Entro no apartamento que já conhecia de
fotografias, mas pareceu bem maior pessoalmente. Sinto cheiro de café e me
estendem uma xícara. Sou o último a chegar. Trouxeram pinhão, porque eu disse
que gostava. Aceito sem jeito, sem lembrar como se come pinhão, mas achei o
mimo de uma delicadeza gigantesca.
Será que sou merecedor?
Tapetes pelo chão, música no ar, fotos na
parede, almofadas, roupas, esculturas, mais fotografias.
- Sabe o que parece isso aqui? O apartamento
onde moraram os Novos Baianos quando foram para São Paulo, disseram o que só
tive coragem de pensar. E parece mesmo, vi em um vídeo e ele falam em uma
música, só não lembro qual.
- Essa conversa de MPB, Chico Buarque é coisa
de intelectual da Educação Popular. O povo gosta mesmo é de Mayara e Maraisa.
Diz um comparsa.
Verdade verdadeira, como diria meu pai. Por outro
lado, preciso admitir, embora contrariado e dando razão ao Luz Gonzaga, meu
conterrâneo, que não devo ser só povo.
Pedaço
de mim – Chico Buarque
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
50
Reais - Mayara e Maraisa
E por acaso esse motel
É o mesmo que me trouxe na lua de mel
É o mesmo que você me prometeu o céu
E agora me tirou o chão
Prefiro Chico Buarque. Em compensação, na
feira, no domingo de manhã, um grupo tocava chorinho para o deslumbramento dos
colegas que filmaram, fotografaram e se lia nos rostos o deslumbramento (embora
defensores da Mayara e da Maraisa, que nem conhecia ainda, mas que gostei de
conhecer).
Mas ficou a dúvida: povo mesmo gosta de
chorinho ou de Zeca Pagodinho?
O motorista com a cara e o jeito do Romário
O Rio e Janeiro é um lugar incrível ou foi um
lugar incrível nesta viagem. Não pareceu nada com o que se ouve na tv, que não
vejo mais. No aeroporto chamei um Uber e o motorista, Eduardo, tinha a mesma
cara e o jeito de falar do Romário. Levou-me até Niterói, passando pela linha
vermelha, que eu esperava ser mesmo vermelha, mas não é. Passou pela ponte Rio
Niterói mostrando as melhorias feitas, os pontos turísticos, o museu do amanhã
no outro lado da baia.
Romário dirigia um Nissan e iria trocar de
carro no dia seguinte, o mesmo modelo, porém mais novo. Aquele carro já havia
sido roubado, estava todo arrebentado. Também contou que já tem outros dois
carros que rodam com outros motoristas e em breve irá incluir um carro melhor
no Uber Black, que pode rodar menos e ganhar mais.
Na despedida me disse: fica com Deus e eu senti
falta dele dizer: parceiro, como o Romário.
Os. Não sei se o nome tá certo, foram muitos
motoristas de Uber e devo ter misturado todos eles em um só. Nem vou falar, por
não lembrar dos detalhes, mas peguei outro Uber em que o motorista tinha a cara
e jeito do Dudu Nobre. Achei até que poderia ser ele mesmo, vá saber, tem tanta
gente dirigindo Uber, até eu já pensei em fazer isso, mas não tenho carro.
Nesta cidade ninguém é d’ Oxum
Do restaurante chique, destes da moda, onde a
gente paga caro, come mal e sai insatisfeito, fixei o olhar na mulher com
cadeira de rodas motorizada que passava do outro lado da rua. Inevitável pensar
nas pessoas que vejo sempre, como na semana passada no Bairro São José, do lado
de casa. A cadeira tinha a lona amarrada
com corda de nylon, destas de varal, fitas adesivas e esparadrapo juntavam
retalhos nos apoios dos braços e nas costas. A roda, praticamente quadrada,
exigia mais forças do que a mulher idosa parecia ter para empurrá-la.
O ocupante da cadeira, um menino de uns 17
anos, babava com olhar perdido em parte nenhuma, enquanto aguardava numa filha
infinita. Vida desgraçada, pensava eu revendo aquelas duas cenas ao mesmo
tempo, enquanto a sua volta ouvia risos alegres, histórias espirituosas,
felicidades explicitas, brindes com Chopp caseiro delicioso, mas caro demais
para maioria das pessoas com quem convivo no cotidiano.
Se vivenciar esses dois mundos é inevitável,
porque não consigo desligar um pouco, só às vezes? Deveria estar feliz, não
pensar em mais nada além deste momento proporcionados por amigos sinceros,
afetuosos e leais. Mas não consigo, não totalmente.
Lembro uma vez, quando ainda era metalúrgico em
Curitiba, deixei de fazer hora extra no sábado pela manhã, fui ao centro comprar
o novo disco do Lobão. Na época ainda existiam discos e o Lobão não era de
direita, não que isso mude o que sinto pela música dele.
Voltando para casa, no ponto de ônibus, com o
disco novo, “O inferno é fogo”, um menino na rua apontou o dedo para eu e
perguntou:
- De quem é o disco?
Virei a capa para ele, que leu com dificuldade
e disse:
- Um dia vou comprar um também.
Acabou com meu dia, minha semana, meu mês.
Fiquei pensando que aquele sonho, tão ridículo, era tão difícil par ele quanto
era para eu, naquele momento, imaginar que um dia estaria em Niterói, num lugar
como esse em que estava agora. Senti-me culpado por poder comprar um disco e
ele não, assim como sinto-me culpado por poder estar neste lugar e tantas
outras pessoas não.
Por entre os prédios
Pela janela do apartamento fiquei olhando,
por entre as paredes de concreto dos edifícios. Lá, bem longe, quase escondido,
uma escadaria que dava na favela.
- Onde vai dar aquela escada?
- Numa comunidade, lá em cima, tá vendo aquela
antena?
- Qual o nome?
- Já me disseram, mas não lembro.
No chão alguém dormia, enquanto na
comunidade o tiroteio começava.
Aeroporto
No aeroporto, observando a partida dos aviões,
percebo sem explicação que partida também quer dizer: Par-ti-da.
A partida como rachadura, quebra,
separação. Como essa cidade par-ti-da,
como fiquei eu nestes dias todos: par-ti-do.
Livro
Sobre o lançamento do livro?
Não vou falar nada, seria obvio demais.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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