Ernande Valentin do Prado
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Um desenho. Alice, 2017. |
A menina deitada
na cama hospitalar tinha os olhos amarelados, dores em toda a barriga,
sentindo-se nauseada. Mesmo assim não conseguiu resistir quando a médica,
fazendo-se de simpática, perguntou:
- O que essa
menina linda está fazendo aqui?
Ela olhou divertida,
sem esconder sua ironia azeda, o sorriso de deboche, o olhar de felicidade de
seus nove anos. De sobrancelha apontou, tanto para médica quanto para o homem
em pé ao seu lado, a identificação na porta: sala de observação:
- Estou sendo
observada, ué.
Cinco horas
depois entrou no quarto uma técnica de enfermagem, olhando o rosto da menina,
já com sinais de impaciência pela longa espera, disse enquanto já ia tirando o
lençol da cama:
- Você vai para
outro quarto.
Ao mesmo tempo
olhou o homem ao lado da cama e acrescentou, como se já fosse uma informação
velha:
- ... ela já
sabe que vai internar?
- Nem eu sabia...
Disse o homem.
Ele esperava que pudesse fazer o acompanhamento do problema em ambulatório,
como previra o médico que deixara o plantão na hora do almoço, afinal de contas
era só uma hepatite A.
A técnica de
enfermagem saiu, do mesmo jeito que entrou, como um rastro de fumaça. Quando
voltou, alguns minutos depois, disse que foi engano. Atrás veio o médico, alto,
magro, com rosto sério, diferente dos outros dois jovens. Era o professor. Esse
é um hospital importante, universitário e além de simples médicos, de
residentes, internos, plantões, enfermeiras, técnicos de enfermagem, tem os
professores.
O professor vem
com seu jaleco cinza, talvez para se diferenciar dos demais, aberto, esvoaçando
atrás de si. O pai, como passa a ser conhecido o homem em pé ao lado da cama da
menina de olhos amarelos, não conseguiu deixar de comparar a cena do médico que
caminha altivo no corredor com a cena do Batman correndo atrás do coringa nas
trevas de Gotham.
- Só faltava
a capa ser preta...
Pensa alto, sem
conseguir evitar.
- O quê?
Pergunta o homem
da capa cinza.
- Nada, estava
pensando em outra coisa...
Disfarçou o
homem que todas a outras pessoas começaram a chamar de pai.
- Sua filha não
tem hepatite infecciosa, vamos dar alta para sua filha, pai...
Diz o médico.
- Por que? Não
consigo entender, ela não está com hepatite A, mas tem outra coisa, não tem?
- Não...
Diz calmamente o
médico, sério, voz calma e tranquilizadora, parecendo ele o pai. O homem que
virava pai de todos, sem ser Odin, fica pensando que pai mesmo era aquele
médico, com sua voz calmante, bem colocada, na altura certa e com autoridade inquestionável.
Estranhou o fato de ninguém lhe chamar de pai, nem os residentes que pareciam
eletrons circulando em sua esfera.
- ... ela tem
claramente uma hepatite, mas não é infecciosa. Os exames são conclusivos, não é
infecciosa e aqui só internamos pessoas com doenças infecciosas.
O homem pai de
todos, sem o poder do rei de Asgard, olha sua filha deitada na cama, olhos e pele amarelos. Sente-se
perdido, mas não pode admitir, não é o que se espera dele.
- E o que devo
fazer?
- Não sei...
Diz o médico,
revelando que não passa nem perto do poder do Batman. Imagina se o homem
morcego diria uma coisa dessas: não sei. O Batman sempre sabe o que fazer, não
abandona a vítima, nem o bandido (o coringa sabe bem). O Batman tem princípios,
age com base neles, mesmo que tivesse que destruir uma cidade inteira. O Batman
de capa cinza, ele não, ele parece circular num quadrado de obviedades
protocolares segundo sua cartilha de hepatites virais clássicas, sem lembrar
(ou sem se importar) que existem outros vírus capazes de provocar hepatite.
- Posso ir à
pediatria ver se há vaga lá.
Disse um dos
elétrons e devidamente autorizada pelo Batman saiu. Quando voltou disse, com
voz de quem tentava fazer um favor, que não tinha jeito, que lá não tem vaga. O
Batman sentenciou:
- Tem que ir
embora, procurar vaga em outros hospitais.
O pai ainda
insistiu, atordoado com a situação estranha: ela não deveria ficar internada
aqui até aparecer uma vaga na pediatria? O homem, coma voz calma, irredutível,
sem vacilar diz que não: aqui não pode internar sem ser uma doença infecciosa.
- Veja bem...
Disse o pai,
calmamente:
- ... ela foi
encaminhada pela médica da Unidade de Pronto Atendimento, não tem como eu bater
de porta em porta procurando uma vaga, eu deveria voltar para UPA, mas lá eles
não têm o que fazer, já encaminharam para cá.
- Não é caso de
UPA mais, com certeza...
Disse o homem,
do alto de seus, digamos, 30 anos de medicina, como se tivesse dizendo algo que
ninguém tinha percebido ainda.
- ... mas aqui
ela não pode ficar. O senhor tem que ir. E é melhor ir logo que os hospitais
pediátricos vivem lotados.
O pai segurou a
mão da filha. Ela pareceu assustada:
- O que vamos
fazer agora, pai?
O homem não é o
pai de todos, não passa nem perto disso, nem tão pouco usa uma capa de cor
errada imitando o Batman, mas sabe que tem que fazer alguma coisa. Saiu pelo
corredor, aparentemente certo do que fará, certo de para onde vai, ao menos é o
que pareceu para filha. Por dentro sentia vontade de chorar, não sabia como
lidar com aquela situação nova em sua vida.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
Partes já publicadas:
Partes a publicar:
3 Kafkiano
4 O Cerco
5 Regras
6 Respeito
7 Comunicação Perfeita
8 Cuidada
9 Contrabando
10 Brinquedoteca
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