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01 setembro 2017

2 ABANDONADOS - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Ernande Valentin do Prado
Um desenho. Alice, 2017.


A menina deitada na cama hospitalar tinha os olhos amarelados, dores em toda a barriga, sentindo-se nauseada. Mesmo assim não conseguiu resistir quando a médica, fazendo-se de simpática, perguntou:
- O que essa menina linda está fazendo aqui?
Ela olhou divertida, sem esconder sua ironia azeda, o sorriso de deboche, o olhar de felicidade de seus nove anos. De sobrancelha apontou, tanto para médica quanto para o homem em pé ao seu lado, a identificação na porta: sala de observação:
- Estou sendo observada, ué.
Cinco horas depois entrou no quarto uma técnica de enfermagem, olhando o rosto da menina, já com sinais de impaciência pela longa espera, disse enquanto já ia tirando o lençol da cama:
- Você vai para outro quarto.
Ao mesmo tempo olhou o homem ao lado da cama e acrescentou, como se já fosse uma informação velha:
- ... ela já sabe que vai internar?
- Nem eu sabia...
Disse o homem. Ele esperava que pudesse fazer o acompanhamento do problema em ambulatório, como previra o médico que deixara o plantão na hora do almoço, afinal de contas era só uma hepatite A.
A técnica de enfermagem saiu, do mesmo jeito que entrou, como um rastro de fumaça. Quando voltou, alguns minutos depois, disse que foi engano. Atrás veio o médico, alto, magro, com rosto sério, diferente dos outros dois jovens. Era o professor. Esse é um hospital importante, universitário e além de simples médicos, de residentes, internos, plantões, enfermeiras, técnicos de enfermagem, tem os professores.
O professor vem com seu jaleco cinza, talvez para se diferenciar dos demais, aberto, esvoaçando atrás de si. O pai, como passa a ser conhecido o homem em pé ao lado da cama da menina de olhos amarelos, não conseguiu deixar de comparar a cena do médico que caminha altivo no corredor com a cena do Batman correndo atrás do coringa nas trevas de Gotham.
- Só faltava a capa ser preta...
Pensa alto, sem conseguir evitar.
- O quê?
Pergunta o homem da capa cinza.
- Nada, estava pensando em outra coisa...
Disfarçou o homem que todas a outras pessoas começaram a chamar de pai.
- Sua filha não tem hepatite infecciosa, vamos dar alta para sua filha, pai...
Diz o médico.
- Por que? Não consigo entender, ela não está com hepatite A, mas tem outra coisa, não tem?
- Não...
Diz calmamente o médico, sério, voz calma e tranquilizadora, parecendo ele o pai. O homem que virava pai de todos, sem ser Odin, fica pensando que pai mesmo era aquele médico, com sua voz calmante, bem colocada, na altura certa e com autoridade inquestionável. Estranhou o fato de ninguém lhe chamar de pai, nem os residentes que pareciam eletrons circulando em sua esfera.
- ... ela tem claramente uma hepatite, mas não é infecciosa. Os exames são conclusivos, não é infecciosa e aqui só internamos pessoas com doenças infecciosas.
O homem pai de todos, sem o poder do rei de Asgard,  olha sua filha deitada na cama, olhos e pele amarelos. Sente-se perdido, mas não pode admitir, não é o que se espera dele.
- E o que devo fazer?
- Não sei...
Diz o médico, revelando que não passa nem perto do poder do Batman. Imagina se o homem morcego diria uma coisa dessas: não sei. O Batman sempre sabe o que fazer, não abandona a vítima, nem o bandido (o coringa sabe bem). O Batman tem princípios, age com base neles, mesmo que tivesse que destruir uma cidade inteira. O Batman de capa cinza, ele não, ele parece circular num quadrado de obviedades protocolares segundo sua cartilha de hepatites virais clássicas, sem lembrar (ou sem se importar) que existem outros vírus capazes de provocar hepatite. 
- Posso ir à pediatria ver se há vaga lá.
Disse um dos elétrons e devidamente autorizada pelo Batman saiu. Quando voltou disse, com voz de quem tentava fazer um favor, que não tinha jeito, que lá não tem vaga. O Batman sentenciou:
- Tem que ir embora, procurar vaga em outros hospitais.
O pai ainda insistiu, atordoado com a situação estranha: ela não deveria ficar internada aqui até aparecer uma vaga na pediatria? O homem, coma voz calma, irredutível, sem vacilar diz que não: aqui não pode internar sem ser uma doença infecciosa.
- Veja bem...
Disse o pai, calmamente:
- ... ela foi encaminhada pela médica da Unidade de Pronto Atendimento, não tem como eu bater de porta em porta procurando uma vaga, eu deveria voltar para UPA, mas lá eles não têm o que fazer, já encaminharam para cá.
- Não é caso de UPA mais, com certeza...
Disse o homem, do alto de seus, digamos, 30 anos de medicina, como se tivesse dizendo algo que ninguém tinha percebido ainda.
- ... mas aqui ela não pode ficar. O senhor tem que ir. E é melhor ir logo que os hospitais pediátricos vivem lotados.
O pai segurou a mão da filha. Ela pareceu assustada:
- O que vamos fazer agora, pai?
O homem não é o pai de todos, não passa nem perto disso, nem tão pouco usa uma capa de cor errada imitando o Batman, mas sabe que tem que fazer alguma coisa. Saiu pelo corredor, aparentemente certo do que fará, certo de para onde vai, ao menos é o que pareceu para filha. Por dentro sentia vontade de chorar, não sabia como lidar com aquela situação nova em sua vida.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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3 Kafkiano
4 O Cerco        
5 Regras    
6 Respeito 
7 Comunicação Perfeita       
8 Cuidada 
9 Contrabando     
10 Brinquedoteca

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