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05 janeiro 2018

10 BRINQUEDOTECA - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Felicidade. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Quando o pai entrou no quarto, pouco antes das oito horas, a menina dos olhos amarelos disse:
- A brinquedoteca já abriu?
- Ainda não.
Respondeu o pai.
Era o primeiro dia que ficava sem soro fisiológico constante. Os últimos exames mostravam que o soro não era mais necessário, não trazia benefícios, como se imaginava e poderia até estar sendo um problema, disse a médica ao anunciar que o suspenderia.
Agora estava mais livre, podia caminhar ou ver tv no corredor, ir para brinquedoteca sem se preocupar se iria receber pouco soro.
- Vamos comer, depois vou ver se abriu...
Aproveitou o homem para estimular a menina a comer, coisa que era muito difícil. Não estou com fome, foi o que ela respondeu. O homem foi firme: sem comer não dá para ficar na brinquedoteca: vai que desmaia de fraqueza lá?
- Pai, eu estou internada na brinquedoteca, tenho que ficar lá...
Disse sorrindo a menina, mais uma vez não aparentando estar doente. Nem parecia a mesma menina que no dia anterior chorou se dizendo muito nova para morrer.
Na porta da brinquedoteca agarrou o trinco, abriu, viu o rapaz da limpeza e perguntou: já posso entrar? Ele pareceu contrariado, indeciso, mas não conseguiu dizer que não.
A menina entrou, a psicopedagoga, que já estava lá, perguntou: quer ouvir uma história?
- Quero...
Respondeu a menina sem pensar, sem esconder a satisfação e o enorme sorriso que disfarçava os olhos amarelos, quase alaranjados.
Ouviu, depois chegou outra criança, quando a história já estava no meio. A menina contou a história para ele, depois desenharam, pintaram, jogaram, viram vídeos. Foram comer: recusou, de novo, o almoço:
- Essa comida é ruim e tá fria...
Comeu duas colheradas de um macarrão excessivamente cozido, só para não parecer que não estava cumprindo seu acordo com o pai. Na boca o macarrão virava uma pasta, que ela fazia questão de mostrar ao pai e comparar com a cola que usava para fixar figuras no caderno.
Esperou ansiosa o tempo passar até a brinquedoteca abrir novamente, voltou para lá. Às 17 horas, quando saiu, junto com as funcionárias e as extensionistas, estudantes de terapia ocupacional, de fonoaudiologia, psicologia, enfermagem, disse, abraçada ao pai e caminhando pelo corredor de volta ao quarto:
- Não falei, tô internada na brinquedoteca...
Um dia bom, apesar de tudo...
Pensou o pai.
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22 dezembro 2017

9 CONTRABANDO - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Cavalo com tranças. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado
A médica residente entrou no quarto às oito e meia, antes do lanchinho das nove. A menina de olhos amarelos ainda estava na cama, sentia muito frio para tomar banho no chuveiro gelado do quarto ou para levantar-se. A brinquedoteca ainda estava fechada, naquele dia, e ela só costumava se animar quando o local estava aberto. Nos fins de semana, quando a brinquedoteca não abria, era uma tortura para ela aguentar o tempo passar, nos outros dias até parecia que não percebia que estava no hospital, apesar das dores, das punções, dos exames, das medicações, da comida que não suportava, das muitas regras.
A médica sorria, tentando chamar atenção da menina, que não estava mesmo animada:
- Olha o que eu trouxe...
Disse a médica, enfiando a mão no bolso do jaleco e tirando jujubas coloridas e balas de gelatina em forma de ursinhos.
- ... eu não disse que ia contrabandear?
A menina sorriu sem conseguir esconder a tristeza. Estendeu as mãos para pegar os doces, parecia mais agradecida pelo gesto do que pelo doce e não queria parecer mal agradecida. Pai e mãe insistiam que deveria ser uma menina agradecida. Se não demonstrasse estar satisfeita naquele momento, mesmo sem conseguir pensar em comer o doce, certamente teria que ouvir discurso quando as médicas saíssem. Discurso essa hora, ninguém merece. Deve ter pensado.
 - Não deixe a nutricionista ver...
Disse a residente, pouco mais do que uma menina ainda, talvez sentindo-se fazendo uma travessura ao desobedecer às regras nutricionais do hospital.
- Vou esconder...
Respondeu a menina dos olhos amarelos com um sorriso cumplice na boca e um brilho diferente nos olhos, apesar do mal humor matinal.


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01 dezembro 2017

8 CUIDADA - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Corações coloridos. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado
A copeira encontrou o homem no corredor, em frente a brinquedoteca, quase chegando à porta do elevador. O reconheceu de imediato, pois lhe entregava a dieta todos os dias:
- Sua filha comeu hoje?
Não comeu nada, disse o homem. A mulher, de baixa estatura, parecia ainda menor com aquela touca branca na cabeça, observou o homem, mas não disse nada. Sentia-se profundamente cuidado pelo interesse legitimo da mulher em saber de sua filha, coisa que não sentia da parte da maioria das médicas e das enfermeiras.
- Com fé em Deus ela logo vai melhorar...
Disse a mulher, escondida atrás de seu carrinho cheio de bandejas, pratos, talheres.
- ... depois passo lá no quarto e levo o suplemento de morango, sei que ela gosta.
O homem ficou olhando a copeira caminhar pelo corredor empurrando aquele carrinho que parecia pesado. Sentiu os olhos encher de lagrimas, comovido pela atenção da mulher. Amargamente pensou: por que a maioria das enfermeiras não podem ser assim?
Ao entrar no quarto a filha estava chateada. A mãe teve que sair antes do esperado e não deu tempo de fazer as tranças no cabelo.
- Sei de uma pessoa que faz tranças lindas...
Disse a enfermeira, até então em pé no canto do quarto, escondida atrás de uma máscara e uma prancheta.
A menina fez que não ouviu. A enfermeira fez que não falou nada. Saiu do quarto. A menina foi para o banheiro, tomou banho, vestiu-se, penteou os cabelos insatisfeita, querendo brigar com todos que entrava no quarto, inclusive com o pai.
No corredor passou uma senhora, técnica de enfermagem da mais antigas do hospital. Entrou no quarto, disse que sabia fazer tranças, perguntou se a menina queria. Ela não respondeu, estava desgostosa demais para admitir alguma coisa, mas não resistiu quando a mulher pegou em seu cabeço e fez as tranças.
No dia da alta, antes de ir embora, a menina procurou a técnica que sabia fazer tranças, queria se despedir dela. Não achou, mas deixou um abraço. A copeira ganhou um abraço bem apertado, antes da menina seguir seu caminho pelo corredor, sem olhar para trás.


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17 novembro 2017

7 COMUNICAÇÃO PERFEITA - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Ornamental. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado
- Eu sou muito nova pra morrer...
Disse a filha chorando, as lágrimas escorrendo pela face. Sentia muitas dores: na cabeça, estômago, nas pernas, sem falar na náusea, a forme, o medo de comer e novamente vomitar. Era a pela primeira vez, desde que internara, que realmente parecia doente aos olhos do pai.
- Estou pedindo a medicação desde às seis da manhã...
Disse a esposa já sem saber o que fazer.
- ...não trazem, parece pirraça...
Era nove e quinze. Segurava a mão da filha e tentava lhe explicar que não ia morrer, que eram só dores. Mas ela não conseguia entender porque sentia dor, porque não lhe davam o remédio que o médico lhe disse que estava prescrito e era só ela pedir. O homem também não entendia essa demora, desde que chegara ao hospital, por volta das oito e quinze, estava tentando comunicar-se com a enfermeira, com a técnica de enfermagem e pareciam lhe ignorar. Queria evitar outra briga, como a que teve no segundo andar, mas também não queria ver a filha desassistida daquela maneira.
Na prescrição médica constava dipirona intravenosa, quando necessária, também medicação para evitar vômitos, dores de estômago, enjoo, como o médico de plantão lhe explicara pacientemente no dia anterior. Por que então a filha não fora medicada ainda?
O homem desconfia que o problema começou com um erro isolado que foi provocando outros erros sucessivos, todos causados pela imensa dificuldade de comunicação que existia na imensa equipe multiprofissional e principalmente entre os profissionais, os doentes, os acompanhantes dos doentes. Todos parecem capazes de falar, mas quase ninguém de ouvir.
A menina de olhos amarelos, sem diagnóstico, precisava fazer alguns exames que o hospital tinha dificuldade em liberar: (burocracia, falta de paciência, burrice, má vontade, descaso, tudo isso junto, talvez). Uma das médicas fez a solicitação do exame e por via das dúvidas perguntou ao pai se poderia por sua conta providenciar. Ele providenciou.
Os profissionais do laboratório do hospital colheram o sangue, mas como não era de rotina, colheram em frascos errados, o que o homem descobriu depois de atravessar a cidade em direção ao laboratório, onde fora levar o sangue.  
Como pode, pensou o homem: o pessoal do laboratório só faz colher sangue e outros fluidos para exames e não sabe em qual frasco colocar cada qual?
Pensou, mas não disse nada. Não era só as despesas (que se acumulavam, apesar do serviço ser público), não era só o tempo perdido, era principalmente mais uma punção venoso no braço da filha, que não achava mais graça quando ele dizia que o sangue ia vazar como em um chuveirinho. Mesmo assim foi feita nova coleta de sangue, sobre protesto dos profissionais do laboratório, que não admitiam o erro, mas depois de muita insistência, de diferentes profissionais, colheram o sangue novamente. O sangue foi encaminhado, já tinha cinco dias e o resultado sairia em menos de vinte quatro horas.
No dia anterior a esse momento em que a filha se sentia mal, pela manhã, junto com outros exames, colheram mais sangue para repetir os mesmos exames que já haviam sido encaminhados para o laboratório na semana anterior. Finalmente havia saído, mais de uma semana depois de solicitado, a autorização do hospital.
Por que? Foi o que o homem perguntou a residente que lhe informou que o sangue havia sido colhido. Ela já fez esses exames, eu mesmo levei ao laboratório, agora fazer outro para que?
A residente só soube dizer que estava pedido. Porém, aproveitando que o homem não estava no hospital, fizeram nova coleta de sangue, de novo em frascos errados.
- Vamos fazer nova coleta amanhã cedo...
Disse a residente. O homem respondeu que não seria necessário, que no dia seguinte sairia o resultado daqueles exames, mostrou inclusive o pedido para ela. A mulher saiu dizendo que ia conferir com a médica de plantão. Em alguns minutos a plantonista veio ao quarto. Disse:
- O senhor não quer autorizar a coleta dos exames para sua filha?
- A questão não é de autorizar ou não...
Disse o homem, já prevendo que havia um problema na comunicação.
- ... o que eu disse para residente é que esse exame já foi feito, o resultado sai amanhã. Se colher outro exame agora, vai precisar de novo jejum, nova punção venosa, novo pagamento para um exame que já foi pago, mais uma semana para ter resultado.
- Então o senhor não quer?
- Estou tentando dizer que não é necessário, mas se a senhora quer ouvir que não quero, então tá: não quero. Disse enfim.
Observando que a médica não estava realmente lhe ouvindo, pegou o protocolo com a coleta e entrega do material ao laboratório e mostrou para médica. Ela, parecendo compreender concordou que não seria necessária nova coleta de material. Não confiando na capacidade de comunicação dos profissionais, o homem procurou a enfermeira da tarde e explicou a situação novamente. Ela disse que informaria a enfermeira da noite. Antes de ir embora o homem, ainda desconfiado, foi até a enfermeira da noite e perguntou se ela estava sabendo que o jejum da filha para a coleta de exames havia sido cancelado. Ela disse que não sabia, que a enfermeira da tarde não havia lhe informado de nada, que ainda constava previsto o jejum.
O homem, aborrecido, vendo que sua previsão estava correta, explicou tudo de novo, mostrou o protocolo, informou que já havia falado com a residente, com a plantonista, com a médica assistencial, com a enfermeira da tarde e que não seria necessário aquele exame.
Desta vez ficou satisfeito, parecia que a enfermeira tinha lhe ouvido. Mas não ouviu. As vinte e duas horas a menina dos olhos amarelos fora avisada que não deveria mais comer, que iria fazer exames no dia seguinte.
- Ela vomitou muito, pouco antes das seis horas.
Disse a mãe.
Às oito e trinta, quando entrou no quarto, encontrou a moça do laboratório querendo fazer a coleta do exame, que pensou estar cancelado. Explicou-lhe tudo que já havia explicado antes, para todos os profissionais de dois plantões diferentes. Ela concordou que o melhor era não fazer a coleta e se foi. O homem saiu ao corredor e pediu para falar com a técnica de enfermagem que estava cuidando da menina, naquele dia. Ela estava ocupada, ele então pediu para falar com a enfermeira. Ela veio:
- Minha filha está com dor, desde às seis da manhã e ainda não foi medicada. Pode, por favor, fazer a medicação para ela?
Disse contendo sua raiva, mas a mulher deve ter percebido. Foi ao balcão verificar, quando voltou disse:
- Ninguém solicitou medicação, por isso ela não foi medicada.
- Foi solicitado sim, mas como foi no plantão anterior, não devem ter avisado. Pode por favor medicar ela agora, está sentindo dor?
A enfermeira saiu. O homem entendeu que ela fora preparar a medicação, mas ela voltou em uns dez minutos com a técnica de enfermagem, queria provar ao homem que a medicação não fora solicitada.
- Não vem ao caso se foi solicitado ou não. Dá para fazer a medicação?
A mulher pareceu nem ouvir a fala do homem, continuou insistindo:
- O senhor tem que entender que ninguém pediu a medicação.
Sem disfarçar a raiva que subia em sua cabeça, disse:
- Foi pedido sim. Minha filha tá com dor, porque não pediríamos a medicação?
- Pai...
O homem cortou a fala da mulher, agora já sem paciência nenhuma.
- Primeiro: não sou seu pai. Segundo: há um problema de comunicação. Foi pedida a medicação no plantão passado e você não ficou sabendo... ou tem um problema de comunicação entre vocês ou minha esposa é mentirosa...
- Pai... nossa comunicação é perfeita...
- Tá certo, então minha esposa é mentirosa, mas olhe aqui, minha filha tá ou não com dor. Tá vendo ela chorando?
A mulher não respondeu, apenas saiu do quarto.
- Então não me interessa se a comunicação de vocês é perfeita, pode fazer a medicação agora?
Virou-se de costas para as mulheres, enquanto elas iam saindo. Então voltou-se para as duas:
- ... só mais uma coisa: eu tenho nome, não sou seu pai...
Diante da perplexidade das duas, mudas, paralisadas, disse:
- ... entendeu?


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03 novembro 2017

6 RESPEITO - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Pônei. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Poucos minutos depois que a nutricionista saiu do quarto, pisando duro, como disse a esposa, entrou uma mulher com o cabelo pintado de loiro, amarrado tipo rabo de cavalo, o que fez a imaginação delirante do homem levantar a hipótese de que cabelo amarrado tipo rabo de cavalo fosse uma regra do hospital. A esposa, que passara toda a noite com a filha, estava se preparando para ir para casa, mas esperou para ver o que aquela mulher de vestido estampado, pouco acima dos joelhos, jaleco branco arreganhado, cobrindo o bordado do nome e da função, queria.
Depois de invadir o quarto com postura resoluta e assertiva, certa de que imporia respeito, mesmo que no soco, disse com voz suave e baixa, quase inaudível:
- O que está acontecendo aqui?
O homem e sua esposa, acreditando que estavam falando com a chefe das nutricionistas e que talvez ela fosse uma profissional com uma postura diferente, quem sabe mais aberta e disposta ao diálogo e não a ditar regras, quem sabe até capaz de olhar para a criança doente e entender que comer é mais importante do que comer nos horários específicos do hospital, explicou tudo como lembravam ter acontecido, durante a visa da nutricionista.
A mulher do jaleco arreganhado esperou o tempo da narração, aproximou-se do homem, ignorando sua esposa, ocupou o espaço pessoal dele, talvez como estratégia para provocar desconforto. Disse, demonstrando que nada do que disseram fez nenhuma diferença, no que estava certa que sabia:
- Qual a doença de sua filha?
- A senhora não olhou no prontuário?
Disse o homem, incomodado com a proximidade da mulher e com sua fala aparentemente doce.
- A sua filha tem uma doença grave...
Disse em voz baixa, mas com tom autoritário que não admitia ser questionado. O homem recuou um passo, não queria tanta proximidade:
- ... ela não pode comer qualquer coisa... o senhor sabe o que ela tem?
- Eu sei, e a senhora sabe?
A mulher piscou teatralmente os olhos, avançou um passo em direção ao homem, para ocupar novamente seu espaço pessoal.
- Eu sei sim, acha que viria no quarto sem saber o que ela tem?
- Acho sim...
Disse o pai, andando até a porta. Olhou o corredor para ver se havia alguém que conhecia ali por perto. Não tinha.
- O que a senhora veio fazer aqui, quem é você?
- Eu vim lhe explicar que o hospital tem regras...
O homem não conseguiu esconder que estava muito desconfortável com aquela situação, com aquela mulher de fala baixa e aparentemente macia. Sentia que estava perdendo seu tempo contando a mesma coisa para uma outra pessoa que não parecia ouvir, que não parecia disposta a rever os procedimentos e que talvez não tivesse nada que ver com o setor.
- Já conheço as regras...
- Então vamos falar sobre respeito.
Meus Deus, pensou o homem. Ergueu os braços como quem implora ajuda divina. Olhou a filha deitada na cama, assustada com aquela situação absurda. Pensou em recuar, deixar pra lá, mas não conseguiu.
- Sobre respeito não dá para falar com a senhora. Nem sei quem você é, cadê o crachá? A senhora entrou no quarto parecendo uma pessoa e agora já nem sei quem é.
A mulher meio que riu, como que debochando. Ocupou o espaço pessoal novamente, fixou os olhos e disse:
- O senhor está se exaltando...
- E a senhora acha que porque fala baixo é menos agressiva que eu?
- Acho sim...
Disse a mulher.
- ... eu vim lhe explicar sobre respeito aos profissionais.
Já disse, minha senhora...
Disse o homem, de novo na porta procurando alguém que pudesse tirar aquela mulher do quarto da filha, cada vez mais nervoso:
- ... sobre respeito a senhora não é a pessoa apropriada para falar. Além disso, aprendi com minha mãe, respeito não se pede, tem que fazer por merecer.
- Então vamos falar sobre infecção cruzada...
Disse a mulher, sem se dar por vencida e começou a falar sobre os perigos de restos de comida deixados no quarto, o quanto isso atraia insetos e insetos atraia doenças novas para os internados.
- ... o senhor sabe o que é uma infecção cruzada?
- Sei, sim senhora. E a senhora, sabe?
Disse o homem, tentando conter sua irritação.
- Eu sei. O senhor acha que não sei o que é infecção cruzada?
- Não sei se a senhora sabe. Na verdade, nem sei quem é a senhora, qual sua função.
- Eu sou a médica de plantão...
Disse finalmente a mulher, como se o fato de ser médica explicasse tudo, como se isso fosse suficiente para impor seu saber, sua legitimidade em ter invadido o quarto de uma pessoa internada, sem se identificar, sem dizer o que queria, como se não precisasse ouvir...
- O fato da senhora ser médica explica o que?
Disse o homem e antes que a mulher pudesse falar outra coisa acrescentou que não entendia o que ela fora fazer ali, uma vez que chegou dizendo que queria falar sobre respeito, mas não se dera ao respeito em momento algum. Depois disse que queria falar de infecção cruzada, mas estava de sapato aberto, jaleco arreganhado e não vira ela passar álcool gel 70% nas mãos quando entrou. Portando, enfatizou:
- Não consigo levar a senhora a sério...
A mulher perdeu a fala por uns segundos, mas antes que pudesse se recobrar e dizer mais alguma coisa, o homem acrescentou:
- Pode, por favor, sair deste quarto, que não te levo a sério?
Por último ainda disse:
- Veja, estou falando no seu tom de voz, na mesma altura de voz da senhora, já que acha que isso é menos agressivo.
A mulher ainda tentou falar outra coisa, mas o homem recusou-se a ouvir, saiu do quarto dizendo:
- Já que a senhora não sai, saiu eu...


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20 outubro 2017

5 REGRAS - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Casa com portão. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

A menina dos olhos amarelos ficou os três primeiros dias quase sem comer. Não era ruim o que serviam, nem tão diferente quanto a comida de casa: arroz, macarrão, carne, purê de batatas, uma fruta de sobremesa. No entanto, a menina não comia. Não era a comida da mãe, além disso era obrigada a comer de colher, que não usava em casa, sem falar que já chegava gelada em seu quarto. 
- Pai, eu não cômo comida fria, você sabe.
- Sei...
Disse. Nem eu comeria, pensa o pai, mas imediatamente tenta justificar a comida chegar gelada, afinal de contas ela precisava comer. Comendo já não era fácil se recuperar, sem comer...
Como ingerir um alimento que não parecia agradável, ainda sem apetite, com náuseas, coceiras e a fraqueza, que a bilirrubina tão alta provocava.
- A senhora tem um garfo?
Pergunta o pai, para a copeira que entregava o almoço naquele dia. Ela lhe olha como se ele estivesse perguntando: você tem um revolver?
- Pai, é proibido entrar garfo no hospital.
- A copeira de ontem me deu um garfo?
- Impossível, pai, nem tem garfo no hospital...
Disse a mulher e virou as costas, deixando claro que não queria conversar e não dando margem para argumentos, tanto que o homem achou que talvez estivesse mesmo delirando. Quando entrou perguntou para filha se, no dia anterior, comeu mesmo de garfo?
- Pai...
Fala a filha, aquela de olhos amarelos, que apesar de tudo parecia se divertir ou zombar das regras:
- ... por que não pode entrar garfo no hospital?
Não sei, disse o pai, ainda sem entender a fala da copeira. E acrescenta, para não perder a oportunidade de fazer uma piada:
- Acho que deve ser como em presidio, minha filha, têm medo da gente usar o garfo como arma.
Quando a nutricionista entrou no quarto, naquele terceiro dia, o pai estava sentado e permaneceu sentado. A mãe, ainda não tinha ido para casa, estava em pé ao lado da cama. A nutricionista perguntou: o que ela gosta de comer? O pai disse que outra pessoa já tinha anotado o que ela comia. A mãe, um pouco mais paciente contou, de novo, o que a menina gostava de comer, apesar de concordar que seria bom que os profissionais olhassem as anotações já feitas.
O pai ficou pensando: é muito desagradável responder a mesma pergunta várias vezes, para várias pessoas diferentes e até para a mesma pessoa. Por que anotam, se não vão olhar? O homem sentado na poltrona pensou que aquela conversa não tinha sentido, uma vez que logo depois de ouvir ou de fazer de conta que ouvia, diriam: não tem, não pode, não deve.
Ao invés de insistir em um assunto de faz de conta, acrescentou problemas que imaginou serem mais fáceis de resolver, como o fato da comida chegar gelada, a falta de garfo e perguntou se poderia trazer de casa alguma coisa que ela pudesse ir comendo nos intervalos entre as refeições. A mulher, sem deixar de olhar para prancheta em sua frente, apenas disse: não. Um não sonoro e definitivo.
O pai não sabia que cara tinha aquela mulher, já que usava uma máscara cobrindo o rosto. Ficou imaginando que se tratava de uma carrasca, ou uma atiradora de elite. Nos filmes essa gente não mostra o rosto, assim evitam represália. Também, por estar com a cara escondida, não precisa fingir empatia.
O pai insistiu, alegou que ela não estava comendo e enfatizou os hábitos de vida, a dificuldades de uma criança de nove anos assimilar as regras do hospital em tão pouco tempo. A Nutricionista deixou de olhar para a prancheta, pela primeira vez. Lentamente erguei a cabeça e dirigiu o olhar para o homem sentando, como quem olhava para alguém que não sabe o que diz e que precisava de explicação para o obvio:
- Pai...
Pausou a fala com efeito teatral, respirou, talvez contendo um profundo desgosto por ter sua autoridade questionada, ou seu saber científico julgado por um simples e ignorante pai. Finalmente disse, como quem cuspe em cima de alguém que lhe ofendeu, como último recurso:
- ... hospital tem regras...
O homem, pensou, embora não tenha dito: não sou seu pai e interrompeu a fala da mulher antes da conclusão:
- A senhora está dizendo que mais importante do que minha filha comer é ela comer o que a senhora quer e na hora que a senhora quer?
- Hospital tem regras, pai, acha que dá para abrir exceção para todo mundo, ia virar uma baderna...
- Só responde uma coisa...
Disse o homem, já pronto para estourar, mas em voz baixa. Não se levantou para não parecer ameaçador, mas a mulher de meia idade, com rugas nos olhos, cabelo amarrados tipo rabo de cavalo, percebeu.
 - ... respeitar as regras do hospital é mais importante do que comer?
- É sim.
Disse a mulher, convicta.
Apesar de tudo, o homem ficou satisfeito, afinal de contas era a primeira demonstração de que ela estava lhe ouvindo e lhe respondeu a pergunta, sem rodeios:
- Então não tenho mais nada para falar com a senhora.
Disse o homem, já sem paciência.
- ...tantos anos de faculdade para dizer uma besteira dessa. 
Ficou pensando:
- ... será que ter nutricionista no hospital melhorou o atendimento aos doentes ou só arrumou emprega para mais profissionais?
A nutricionista se ofendeu com o homem sentenciando sua pouca efetividades diante das necessidades da filha. Acrescentou:
- As regras são essas, se não está satisfeito pode procurar outro hospital.
Se essa mulher se ofendeu com o que eu disse, nem quero imaginar o que ela faria se pudesse ouvir o que pensei. Não disse nada sobre o que estava pensando, apenas levantou-se, foi até a mulher, disse:
- A senhora acha que está certo me dizer isso?
Ela recuou um passo e disse:
- Está certo sim, se acha que aqui não está bom, leve sua filha para outro hospital.
O homem levou a mão ao bolso de trás da calça e tirou o celular e acrescentou:
- Então repete para eu gravar sua fala, já que está certa, não tem problema, não é verdade?
A mulher virou-se bruscamente e saiu do quarto resmungando, de dentro do quarto o homem, a esposa e a filha ainda ouviram os resmungos e a nítida frase:
- Neste quarto eu não entro mais.
Até que enfim uma boa notícia, pensou o homem olhando para esposa.


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