- Eu sou muito
nova pra morrer...
Disse a filha
chorando, as lágrimas escorrendo pela face. Sentia muitas dores: na cabeça,
estômago, nas pernas, sem falar na náusea, a forme, o medo de comer e novamente
vomitar. Era a pela primeira vez, desde que internara, que realmente parecia
doente aos olhos do pai.
- Estou pedindo
a medicação desde às seis da manhã...
Disse a esposa
já sem saber o que fazer.
- ...não trazem, parece pirraça...
Era nove e
quinze. Segurava a mão da filha e tentava lhe explicar que não ia morrer, que
eram só dores. Mas ela não conseguia entender porque sentia dor, porque não lhe
davam o remédio que o médico lhe disse que estava prescrito e era só ela pedir.
O homem também não entendia essa demora, desde que chegara ao hospital, por
volta das oito e quinze, estava tentando comunicar-se com a
enfermeira, com a técnica de enfermagem e pareciam lhe ignorar. Queria evitar
outra briga, como a que teve no segundo andar, mas também não queria ver a
filha desassistida daquela maneira.
Na prescrição
médica constava dipirona intravenosa, quando necessária, também medicação para
evitar vômitos, dores de estômago, enjoo, como o médico de plantão lhe
explicara pacientemente no dia anterior. Por que então a filha não fora
medicada ainda?
O homem
desconfia que o problema começou com um erro isolado que foi provocando outros
erros sucessivos, todos causados pela imensa dificuldade de comunicação que
existia na imensa equipe multiprofissional e principalmente entre os
profissionais, os doentes, os acompanhantes dos doentes. Todos parecem capazes
de falar, mas quase ninguém de ouvir.
A menina de
olhos amarelos, sem diagnóstico, precisava fazer alguns exames que o hospital
tinha dificuldade em liberar: (burocracia, falta de paciência, burrice, má
vontade, descaso, tudo isso junto, talvez). Uma das médicas fez a solicitação do exame e por via das
dúvidas perguntou ao pai se poderia por sua conta providenciar. Ele
providenciou.
Os profissionais
do laboratório do hospital colheram o sangue, mas como não era de rotina,
colheram em frascos errados, o que o homem descobriu depois de atravessar a
cidade em direção ao laboratório, onde fora levar o sangue.
Como pode,
pensou o homem: o pessoal do laboratório só faz colher sangue e outros
fluidos para exames e não sabe em qual frasco colocar cada qual?
Pensou, mas não
disse nada. Não era só as despesas (que se acumulavam, apesar do serviço ser
público), não era só o tempo perdido, era principalmente mais uma punção venoso
no braço da filha, que não achava mais graça quando ele dizia que o sangue ia
vazar como em um chuveirinho. Mesmo assim foi feita nova coleta de sangue,
sobre protesto dos profissionais do laboratório, que não admitiam o erro, mas
depois de muita insistência, de diferentes profissionais, colheram o sangue novamente. O sangue foi encaminhado,
já tinha cinco dias e o resultado sairia em menos de vinte quatro horas.
No dia anterior
a esse momento em que a filha se sentia mal, pela manhã, junto com outros
exames, colheram mais sangue para repetir os mesmos exames que já haviam sido
encaminhados para o laboratório na semana anterior. Finalmente havia saído, mais
de uma semana depois de solicitado, a autorização do hospital.
Por que? Foi o
que o homem perguntou a residente que lhe informou que o sangue havia sido
colhido. Ela já fez esses exames, eu mesmo levei ao laboratório, agora fazer
outro para que?
A residente só
soube dizer que estava pedido. Porém, aproveitando que o homem não estava no
hospital, fizeram nova coleta de sangue, de novo em frascos errados.
- Vamos fazer
nova coleta amanhã cedo...
Disse a
residente. O homem respondeu que não seria necessário, que no dia seguinte
sairia o resultado daqueles exames, mostrou inclusive o pedido para ela. A
mulher saiu dizendo que ia conferir com a médica de plantão. Em alguns minutos
a plantonista veio ao quarto. Disse:
- O senhor não
quer autorizar a coleta dos exames para sua filha?
- A questão não é de autorizar ou não...
Disse o homem,
já prevendo que havia um problema na comunicação.
- ... o que eu
disse para residente é que esse exame já foi feito, o resultado sai amanhã. Se
colher outro exame agora, vai precisar de novo jejum, nova punção venosa, novo
pagamento para um exame que já foi pago, mais uma semana para ter resultado.
- Então o senhor
não quer?
- Estou tentando
dizer que não é necessário, mas se a senhora quer ouvir que não quero, então
tá: não quero. Disse enfim.
Observando que a
médica não estava realmente lhe ouvindo, pegou o protocolo com a coleta e
entrega do material ao laboratório e mostrou para médica. Ela, parecendo
compreender concordou que não seria necessária nova coleta de material. Não
confiando na capacidade de comunicação dos profissionais, o homem procurou a
enfermeira da tarde e explicou a situação novamente. Ela disse que informaria a
enfermeira da noite. Antes de ir embora o homem, ainda desconfiado, foi até a
enfermeira da noite e perguntou se ela estava sabendo que o jejum da filha para
a coleta de exames havia sido cancelado. Ela disse que não sabia, que a
enfermeira da tarde não havia lhe informado de nada, que ainda constava previsto
o jejum.
O homem,
aborrecido, vendo que sua previsão estava correta, explicou tudo de novo,
mostrou o protocolo, informou que já havia falado com a residente, com a
plantonista, com a médica assistencial, com a enfermeira da tarde e que não
seria necessário aquele exame.
Desta vez ficou
satisfeito, parecia que a enfermeira tinha lhe ouvido. Mas não ouviu. As vinte
e duas horas a menina dos olhos amarelos fora avisada que não deveria mais
comer, que iria fazer exames no dia seguinte.
- Ela vomitou
muito, pouco antes das seis horas.
Disse a mãe.
Às oito e
trinta, quando entrou no quarto, encontrou a moça do laboratório querendo fazer
a coleta do exame, que pensou estar cancelado. Explicou-lhe tudo que já havia
explicado antes, para todos os profissionais de dois plantões diferentes. Ela concordou que o melhor era não fazer a coleta e se foi. O
homem saiu ao corredor e pediu para falar com a técnica de enfermagem que
estava cuidando da menina, naquele dia. Ela estava ocupada, ele então pediu
para falar com a enfermeira. Ela veio:
- Minha filha
está com dor, desde às seis da manhã e ainda não foi medicada. Pode, por favor,
fazer a medicação para ela?
Disse contendo
sua raiva, mas a mulher deve ter percebido. Foi ao balcão verificar, quando
voltou disse:
- Ninguém
solicitou medicação, por isso ela não foi medicada.
- Foi solicitado
sim, mas como foi no plantão anterior, não devem ter avisado. Pode por favor
medicar ela agora, está sentindo dor?
A enfermeira
saiu. O homem entendeu que ela fora preparar a medicação, mas ela voltou em uns
dez minutos com a técnica de enfermagem, queria provar ao homem que a medicação
não fora solicitada.
- Não vem ao
caso se foi solicitado ou não. Dá para fazer a medicação?
A mulher pareceu
nem ouvir a fala do homem, continuou insistindo:
- O senhor tem
que entender que ninguém pediu a medicação.
Sem disfarçar a
raiva que subia em sua cabeça, disse:
- Foi pedido
sim. Minha filha tá com dor, porque não pediríamos a medicação?
- Pai...
O homem cortou a
fala da mulher, agora já sem paciência nenhuma.
- Primeiro: não
sou seu pai. Segundo: há um problema de comunicação. Foi pedida a medicação no
plantão passado e você não ficou sabendo... ou tem um problema de comunicação
entre vocês ou minha esposa é mentirosa...
- Pai... nossa
comunicação é perfeita...
- Tá certo,
então minha esposa é mentirosa, mas olhe aqui, minha filha tá ou não com dor.
Tá vendo ela chorando?
A mulher não
respondeu, apenas saiu do quarto.
- Então não me
interessa se a comunicação de vocês é perfeita, pode fazer a medicação agora?
Virou-se de
costas para as mulheres, enquanto elas iam saindo. Então voltou-se para as duas:
- ... só mais
uma coisa: eu tenho nome, não sou seu pai...
Diante da
perplexidade das duas, mudas, paralisadas, disse:
- ... entendeu?