03 novembro 2017

6 RESPEITO - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Pônei. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Poucos minutos depois que a nutricionista saiu do quarto, pisando duro, como disse a esposa, entrou uma mulher com o cabelo pintado de loiro, amarrado tipo rabo de cavalo, o que fez a imaginação delirante do homem levantar a hipótese de que cabelo amarrado tipo rabo de cavalo fosse uma regra do hospital. A esposa, que passara toda a noite com a filha, estava se preparando para ir para casa, mas esperou para ver o que aquela mulher de vestido estampado, pouco acima dos joelhos, jaleco branco arreganhado, cobrindo o bordado do nome e da função, queria.
Depois de invadir o quarto com postura resoluta e assertiva, certa de que imporia respeito, mesmo que no soco, disse com voz suave e baixa, quase inaudível:
- O que está acontecendo aqui?
O homem e sua esposa, acreditando que estavam falando com a chefe das nutricionistas e que talvez ela fosse uma profissional com uma postura diferente, quem sabe mais aberta e disposta ao diálogo e não a ditar regras, quem sabe até capaz de olhar para a criança doente e entender que comer é mais importante do que comer nos horários específicos do hospital, explicou tudo como lembravam ter acontecido, durante a visa da nutricionista.
A mulher do jaleco arreganhado esperou o tempo da narração, aproximou-se do homem, ignorando sua esposa, ocupou o espaço pessoal dele, talvez como estratégia para provocar desconforto. Disse, demonstrando que nada do que disseram fez nenhuma diferença, no que estava certa que sabia:
- Qual a doença de sua filha?
- A senhora não olhou no prontuário?
Disse o homem, incomodado com a proximidade da mulher e com sua fala aparentemente doce.
- A sua filha tem uma doença grave...
Disse em voz baixa, mas com tom autoritário que não admitia ser questionado. O homem recuou um passo, não queria tanta proximidade:
- ... ela não pode comer qualquer coisa... o senhor sabe o que ela tem?
- Eu sei, e a senhora sabe?
A mulher piscou teatralmente os olhos, avançou um passo em direção ao homem, para ocupar novamente seu espaço pessoal.
- Eu sei sim, acha que viria no quarto sem saber o que ela tem?
- Acho sim...
Disse o pai, andando até a porta. Olhou o corredor para ver se havia alguém que conhecia ali por perto. Não tinha.
- O que a senhora veio fazer aqui, quem é você?
- Eu vim lhe explicar que o hospital tem regras...
O homem não conseguiu esconder que estava muito desconfortável com aquela situação, com aquela mulher de fala baixa e aparentemente macia. Sentia que estava perdendo seu tempo contando a mesma coisa para uma outra pessoa que não parecia ouvir, que não parecia disposta a rever os procedimentos e que talvez não tivesse nada que ver com o setor.
- Já conheço as regras...
- Então vamos falar sobre respeito.
Meus Deus, pensou o homem. Ergueu os braços como quem implora ajuda divina. Olhou a filha deitada na cama, assustada com aquela situação absurda. Pensou em recuar, deixar pra lá, mas não conseguiu.
- Sobre respeito não dá para falar com a senhora. Nem sei quem você é, cadê o crachá? A senhora entrou no quarto parecendo uma pessoa e agora já nem sei quem é.
A mulher meio que riu, como que debochando. Ocupou o espaço pessoal novamente, fixou os olhos e disse:
- O senhor está se exaltando...
- E a senhora acha que porque fala baixo é menos agressiva que eu?
- Acho sim...
Disse a mulher.
- ... eu vim lhe explicar sobre respeito aos profissionais.
Já disse, minha senhora...
Disse o homem, de novo na porta procurando alguém que pudesse tirar aquela mulher do quarto da filha, cada vez mais nervoso:
- ... sobre respeito a senhora não é a pessoa apropriada para falar. Além disso, aprendi com minha mãe, respeito não se pede, tem que fazer por merecer.
- Então vamos falar sobre infecção cruzada...
Disse a mulher, sem se dar por vencida e começou a falar sobre os perigos de restos de comida deixados no quarto, o quanto isso atraia insetos e insetos atraia doenças novas para os internados.
- ... o senhor sabe o que é uma infecção cruzada?
- Sei, sim senhora. E a senhora, sabe?
Disse o homem, tentando conter sua irritação.
- Eu sei. O senhor acha que não sei o que é infecção cruzada?
- Não sei se a senhora sabe. Na verdade, nem sei quem é a senhora, qual sua função.
- Eu sou a médica de plantão...
Disse finalmente a mulher, como se o fato de ser médica explicasse tudo, como se isso fosse suficiente para impor seu saber, sua legitimidade em ter invadido o quarto de uma pessoa internada, sem se identificar, sem dizer o que queria, como se não precisasse ouvir...
- O fato da senhora ser médica explica o que?
Disse o homem e antes que a mulher pudesse falar outra coisa acrescentou que não entendia o que ela fora fazer ali, uma vez que chegou dizendo que queria falar sobre respeito, mas não se dera ao respeito em momento algum. Depois disse que queria falar de infecção cruzada, mas estava de sapato aberto, jaleco arreganhado e não vira ela passar álcool gel 70% nas mãos quando entrou. Portando, enfatizou:
- Não consigo levar a senhora a sério...
A mulher perdeu a fala por uns segundos, mas antes que pudesse se recobrar e dizer mais alguma coisa, o homem acrescentou:
- Pode, por favor, sair deste quarto, que não te levo a sério?
Por último ainda disse:
- Veja, estou falando no seu tom de voz, na mesma altura de voz da senhora, já que acha que isso é menos agressivo.
A mulher ainda tentou falar outra coisa, mas o homem recusou-se a ouvir, saiu do quarto dizendo:
- Já que a senhora não sai, saiu eu...


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Partes já publicadas:

4 O Cerco       
5 Regras    

Partes a publicar:
        
7 Comunicação Perfeita
8 Cuidada 
9 Contrabando     
10 Brinquedoteca

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