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17 novembro 2017

7 COMUNICAÇÃO PERFEITA - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Ornamental. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado
- Eu sou muito nova pra morrer...
Disse a filha chorando, as lágrimas escorrendo pela face. Sentia muitas dores: na cabeça, estômago, nas pernas, sem falar na náusea, a forme, o medo de comer e novamente vomitar. Era a pela primeira vez, desde que internara, que realmente parecia doente aos olhos do pai.
- Estou pedindo a medicação desde às seis da manhã...
Disse a esposa já sem saber o que fazer.
- ...não trazem, parece pirraça...
Era nove e quinze. Segurava a mão da filha e tentava lhe explicar que não ia morrer, que eram só dores. Mas ela não conseguia entender porque sentia dor, porque não lhe davam o remédio que o médico lhe disse que estava prescrito e era só ela pedir. O homem também não entendia essa demora, desde que chegara ao hospital, por volta das oito e quinze, estava tentando comunicar-se com a enfermeira, com a técnica de enfermagem e pareciam lhe ignorar. Queria evitar outra briga, como a que teve no segundo andar, mas também não queria ver a filha desassistida daquela maneira.
Na prescrição médica constava dipirona intravenosa, quando necessária, também medicação para evitar vômitos, dores de estômago, enjoo, como o médico de plantão lhe explicara pacientemente no dia anterior. Por que então a filha não fora medicada ainda?
O homem desconfia que o problema começou com um erro isolado que foi provocando outros erros sucessivos, todos causados pela imensa dificuldade de comunicação que existia na imensa equipe multiprofissional e principalmente entre os profissionais, os doentes, os acompanhantes dos doentes. Todos parecem capazes de falar, mas quase ninguém de ouvir.
A menina de olhos amarelos, sem diagnóstico, precisava fazer alguns exames que o hospital tinha dificuldade em liberar: (burocracia, falta de paciência, burrice, má vontade, descaso, tudo isso junto, talvez). Uma das médicas fez a solicitação do exame e por via das dúvidas perguntou ao pai se poderia por sua conta providenciar. Ele providenciou.
Os profissionais do laboratório do hospital colheram o sangue, mas como não era de rotina, colheram em frascos errados, o que o homem descobriu depois de atravessar a cidade em direção ao laboratório, onde fora levar o sangue.  
Como pode, pensou o homem: o pessoal do laboratório só faz colher sangue e outros fluidos para exames e não sabe em qual frasco colocar cada qual?
Pensou, mas não disse nada. Não era só as despesas (que se acumulavam, apesar do serviço ser público), não era só o tempo perdido, era principalmente mais uma punção venoso no braço da filha, que não achava mais graça quando ele dizia que o sangue ia vazar como em um chuveirinho. Mesmo assim foi feita nova coleta de sangue, sobre protesto dos profissionais do laboratório, que não admitiam o erro, mas depois de muita insistência, de diferentes profissionais, colheram o sangue novamente. O sangue foi encaminhado, já tinha cinco dias e o resultado sairia em menos de vinte quatro horas.
No dia anterior a esse momento em que a filha se sentia mal, pela manhã, junto com outros exames, colheram mais sangue para repetir os mesmos exames que já haviam sido encaminhados para o laboratório na semana anterior. Finalmente havia saído, mais de uma semana depois de solicitado, a autorização do hospital.
Por que? Foi o que o homem perguntou a residente que lhe informou que o sangue havia sido colhido. Ela já fez esses exames, eu mesmo levei ao laboratório, agora fazer outro para que?
A residente só soube dizer que estava pedido. Porém, aproveitando que o homem não estava no hospital, fizeram nova coleta de sangue, de novo em frascos errados.
- Vamos fazer nova coleta amanhã cedo...
Disse a residente. O homem respondeu que não seria necessário, que no dia seguinte sairia o resultado daqueles exames, mostrou inclusive o pedido para ela. A mulher saiu dizendo que ia conferir com a médica de plantão. Em alguns minutos a plantonista veio ao quarto. Disse:
- O senhor não quer autorizar a coleta dos exames para sua filha?
- A questão não é de autorizar ou não...
Disse o homem, já prevendo que havia um problema na comunicação.
- ... o que eu disse para residente é que esse exame já foi feito, o resultado sai amanhã. Se colher outro exame agora, vai precisar de novo jejum, nova punção venosa, novo pagamento para um exame que já foi pago, mais uma semana para ter resultado.
- Então o senhor não quer?
- Estou tentando dizer que não é necessário, mas se a senhora quer ouvir que não quero, então tá: não quero. Disse enfim.
Observando que a médica não estava realmente lhe ouvindo, pegou o protocolo com a coleta e entrega do material ao laboratório e mostrou para médica. Ela, parecendo compreender concordou que não seria necessária nova coleta de material. Não confiando na capacidade de comunicação dos profissionais, o homem procurou a enfermeira da tarde e explicou a situação novamente. Ela disse que informaria a enfermeira da noite. Antes de ir embora o homem, ainda desconfiado, foi até a enfermeira da noite e perguntou se ela estava sabendo que o jejum da filha para a coleta de exames havia sido cancelado. Ela disse que não sabia, que a enfermeira da tarde não havia lhe informado de nada, que ainda constava previsto o jejum.
O homem, aborrecido, vendo que sua previsão estava correta, explicou tudo de novo, mostrou o protocolo, informou que já havia falado com a residente, com a plantonista, com a médica assistencial, com a enfermeira da tarde e que não seria necessário aquele exame.
Desta vez ficou satisfeito, parecia que a enfermeira tinha lhe ouvido. Mas não ouviu. As vinte e duas horas a menina dos olhos amarelos fora avisada que não deveria mais comer, que iria fazer exames no dia seguinte.
- Ela vomitou muito, pouco antes das seis horas.
Disse a mãe.
Às oito e trinta, quando entrou no quarto, encontrou a moça do laboratório querendo fazer a coleta do exame, que pensou estar cancelado. Explicou-lhe tudo que já havia explicado antes, para todos os profissionais de dois plantões diferentes. Ela concordou que o melhor era não fazer a coleta e se foi. O homem saiu ao corredor e pediu para falar com a técnica de enfermagem que estava cuidando da menina, naquele dia. Ela estava ocupada, ele então pediu para falar com a enfermeira. Ela veio:
- Minha filha está com dor, desde às seis da manhã e ainda não foi medicada. Pode, por favor, fazer a medicação para ela?
Disse contendo sua raiva, mas a mulher deve ter percebido. Foi ao balcão verificar, quando voltou disse:
- Ninguém solicitou medicação, por isso ela não foi medicada.
- Foi solicitado sim, mas como foi no plantão anterior, não devem ter avisado. Pode por favor medicar ela agora, está sentindo dor?
A enfermeira saiu. O homem entendeu que ela fora preparar a medicação, mas ela voltou em uns dez minutos com a técnica de enfermagem, queria provar ao homem que a medicação não fora solicitada.
- Não vem ao caso se foi solicitado ou não. Dá para fazer a medicação?
A mulher pareceu nem ouvir a fala do homem, continuou insistindo:
- O senhor tem que entender que ninguém pediu a medicação.
Sem disfarçar a raiva que subia em sua cabeça, disse:
- Foi pedido sim. Minha filha tá com dor, porque não pediríamos a medicação?
- Pai...
O homem cortou a fala da mulher, agora já sem paciência nenhuma.
- Primeiro: não sou seu pai. Segundo: há um problema de comunicação. Foi pedida a medicação no plantão passado e você não ficou sabendo... ou tem um problema de comunicação entre vocês ou minha esposa é mentirosa...
- Pai... nossa comunicação é perfeita...
- Tá certo, então minha esposa é mentirosa, mas olhe aqui, minha filha tá ou não com dor. Tá vendo ela chorando?
A mulher não respondeu, apenas saiu do quarto.
- Então não me interessa se a comunicação de vocês é perfeita, pode fazer a medicação agora?
Virou-se de costas para as mulheres, enquanto elas iam saindo. Então voltou-se para as duas:
- ... só mais uma coisa: eu tenho nome, não sou seu pai...
Diante da perplexidade das duas, mudas, paralisadas, disse:
- ... entendeu?


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03 novembro 2017

6 RESPEITO - DEZ HISTÓRIAS SOBRE A INTERNAÇÃO DA MENINA DE OLHOS AMARELOS

Pônei. Alice, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Poucos minutos depois que a nutricionista saiu do quarto, pisando duro, como disse a esposa, entrou uma mulher com o cabelo pintado de loiro, amarrado tipo rabo de cavalo, o que fez a imaginação delirante do homem levantar a hipótese de que cabelo amarrado tipo rabo de cavalo fosse uma regra do hospital. A esposa, que passara toda a noite com a filha, estava se preparando para ir para casa, mas esperou para ver o que aquela mulher de vestido estampado, pouco acima dos joelhos, jaleco branco arreganhado, cobrindo o bordado do nome e da função, queria.
Depois de invadir o quarto com postura resoluta e assertiva, certa de que imporia respeito, mesmo que no soco, disse com voz suave e baixa, quase inaudível:
- O que está acontecendo aqui?
O homem e sua esposa, acreditando que estavam falando com a chefe das nutricionistas e que talvez ela fosse uma profissional com uma postura diferente, quem sabe mais aberta e disposta ao diálogo e não a ditar regras, quem sabe até capaz de olhar para a criança doente e entender que comer é mais importante do que comer nos horários específicos do hospital, explicou tudo como lembravam ter acontecido, durante a visa da nutricionista.
A mulher do jaleco arreganhado esperou o tempo da narração, aproximou-se do homem, ignorando sua esposa, ocupou o espaço pessoal dele, talvez como estratégia para provocar desconforto. Disse, demonstrando que nada do que disseram fez nenhuma diferença, no que estava certa que sabia:
- Qual a doença de sua filha?
- A senhora não olhou no prontuário?
Disse o homem, incomodado com a proximidade da mulher e com sua fala aparentemente doce.
- A sua filha tem uma doença grave...
Disse em voz baixa, mas com tom autoritário que não admitia ser questionado. O homem recuou um passo, não queria tanta proximidade:
- ... ela não pode comer qualquer coisa... o senhor sabe o que ela tem?
- Eu sei, e a senhora sabe?
A mulher piscou teatralmente os olhos, avançou um passo em direção ao homem, para ocupar novamente seu espaço pessoal.
- Eu sei sim, acha que viria no quarto sem saber o que ela tem?
- Acho sim...
Disse o pai, andando até a porta. Olhou o corredor para ver se havia alguém que conhecia ali por perto. Não tinha.
- O que a senhora veio fazer aqui, quem é você?
- Eu vim lhe explicar que o hospital tem regras...
O homem não conseguiu esconder que estava muito desconfortável com aquela situação, com aquela mulher de fala baixa e aparentemente macia. Sentia que estava perdendo seu tempo contando a mesma coisa para uma outra pessoa que não parecia ouvir, que não parecia disposta a rever os procedimentos e que talvez não tivesse nada que ver com o setor.
- Já conheço as regras...
- Então vamos falar sobre respeito.
Meus Deus, pensou o homem. Ergueu os braços como quem implora ajuda divina. Olhou a filha deitada na cama, assustada com aquela situação absurda. Pensou em recuar, deixar pra lá, mas não conseguiu.
- Sobre respeito não dá para falar com a senhora. Nem sei quem você é, cadê o crachá? A senhora entrou no quarto parecendo uma pessoa e agora já nem sei quem é.
A mulher meio que riu, como que debochando. Ocupou o espaço pessoal novamente, fixou os olhos e disse:
- O senhor está se exaltando...
- E a senhora acha que porque fala baixo é menos agressiva que eu?
- Acho sim...
Disse a mulher.
- ... eu vim lhe explicar sobre respeito aos profissionais.
Já disse, minha senhora...
Disse o homem, de novo na porta procurando alguém que pudesse tirar aquela mulher do quarto da filha, cada vez mais nervoso:
- ... sobre respeito a senhora não é a pessoa apropriada para falar. Além disso, aprendi com minha mãe, respeito não se pede, tem que fazer por merecer.
- Então vamos falar sobre infecção cruzada...
Disse a mulher, sem se dar por vencida e começou a falar sobre os perigos de restos de comida deixados no quarto, o quanto isso atraia insetos e insetos atraia doenças novas para os internados.
- ... o senhor sabe o que é uma infecção cruzada?
- Sei, sim senhora. E a senhora, sabe?
Disse o homem, tentando conter sua irritação.
- Eu sei. O senhor acha que não sei o que é infecção cruzada?
- Não sei se a senhora sabe. Na verdade, nem sei quem é a senhora, qual sua função.
- Eu sou a médica de plantão...
Disse finalmente a mulher, como se o fato de ser médica explicasse tudo, como se isso fosse suficiente para impor seu saber, sua legitimidade em ter invadido o quarto de uma pessoa internada, sem se identificar, sem dizer o que queria, como se não precisasse ouvir...
- O fato da senhora ser médica explica o que?
Disse o homem e antes que a mulher pudesse falar outra coisa acrescentou que não entendia o que ela fora fazer ali, uma vez que chegou dizendo que queria falar sobre respeito, mas não se dera ao respeito em momento algum. Depois disse que queria falar de infecção cruzada, mas estava de sapato aberto, jaleco arreganhado e não vira ela passar álcool gel 70% nas mãos quando entrou. Portando, enfatizou:
- Não consigo levar a senhora a sério...
A mulher perdeu a fala por uns segundos, mas antes que pudesse se recobrar e dizer mais alguma coisa, o homem acrescentou:
- Pode, por favor, sair deste quarto, que não te levo a sério?
Por último ainda disse:
- Veja, estou falando no seu tom de voz, na mesma altura de voz da senhora, já que acha que isso é menos agressivo.
A mulher ainda tentou falar outra coisa, mas o homem recusou-se a ouvir, saiu do quarto dizendo:
- Já que a senhora não sai, saiu eu...


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