Maria Amélia Mano
Margarida escreve cartas
para a mãe no interior, cartas longas, desabafos, confissões. Guarda todas em
caixa de sapato. Falta coragem de enviar. Sempre tem coisas que queremos dizer
e não queremos dizer. Isso é estranheza de ser humano. E por essas de querer
dizer e não querer dizer, é que ela fica rouca vez por outra. É palavra
trancada na garganta, é saber do não dito guardado em caixa singela, imensidão
de segredos de papel, uma vida inteira para ser lida.
Margarida trabalha como
serviços gerais em banheiro de shopping. Além da limpeza toda, precisa se
abaixar, quase que se deitar, para repor o sabonete líquido em um recipiente
embaixo da pia. Quando se faz o simples movimento de apertar a torneira de aço
para lavar as mãos no banheiro do shopping, é de baixo que vem o sabonete.
Sabonete que Margarida, que tem 60 anos, que escreve cartas para a mãe e não
envia, se abaixa para colocar.
E shopping é lugar que
Margarida ama e odeia e precisa. Natal é outra coisa que ama e odeia. É tempo
de muita gente e muita sujeira no banheiro. É tempo de dor nas costas. É tempo
de muito brilho, enfeites bonitos, grande árvore colorida. É tempo que passa
rápido em lugar que nem sabe da sua existência. Logo ela que está em todos os
andares onde tem banheiro pra limpar e sabonete pra repor. E por essas de amar
e odiar, estar e não estar, não ser vista, é que ela fica mais rouca.
Mas Margarida sorri quando
fala dos dois netinhos. É por eles também que ama o Natal. E ajuda os pequenos
a escreverem cartas ao Papai Noel, todos os anos. Aquelas da campanha dos
Correios e Telégrafos. Cartas que, diferente das que escreve para a mãe, faz
questão de enviar. Então, no meio daquela montanha de cartas ao Papai Noel, também
estão as dos netos da Margarida, que tem 60 anos, que trabalha no banheiro do
shopping, que repõe os sabonetes e escreve cartas para mãe e não envia.
Tem sempre alguma coisa que
falta, um dito e escrito que não chega ao destino, um gostar e não gostar que
pouco se acolhe porque é preciso seguir, um movimento invisível que sustenta o
mundo, em silêncio, em dor nas costas, em rouquidão. Mas de toda essa verdade
guardada em três andares de lugar de comprar presentes, o que vale postar e
apostar é no sonho. Que realidade e verdade é dura demais pra se ler. Que
pedido de criança é o que vale enviar, quase como poesia com endereço certo.
E, enquanto escuta os
pedidos dos netos, enquanto escreve para o Papai Noel, enquanto sonha,
Margarida vai limpando a voz, assim como limpamos as mãos, as nossas mãos,
essas que ficam com um cheirinho bom quando nos lavamos no banheiro do shopping.
E o cheirinho é por causa dela. É o cheirinho dela, Margarida. Essa senhora que
se abaixa para repor os sabonetes, que escreve vida que guarda e esperança que
envia, pra fazer sorrir criança.
E se eu repito e repito esse
nome e essa história é para que ela exista, como uma carta viva e sofrida que
recebemos e não lemos, todos os dias, com desenho e perfume, assinada em letra meio
torta: Margarida.
Ilustração: Monica Barengo
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