15 dezembro 2017

O NÃO DIÁLOGO

blablabla. Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado
O professor olhou o relógio pela terceira vez, já era quase 14 horas. Desde as 13 aguardava os usuários agendados para o atendimento daquele dia. Consultou suas anotações e perguntou para a estudante, sentada ao seu lado, olhando mensagens no celular:
- Você leu sobre o Aconselhamento em Teste Rápido?
- Não li...
Respondeu a estudante com muita calma, sem alterar a voz, sem desviar o olhar da tela do telefone celular e sem demonstrar nenhuma preocupação com o tempo.
- Por que não leu?
O professor, tentando quebrar o hipnotismo da tela digital. Insistiu:
- ...essa compreensão é fundamental para atividade que deveríamos estar fazendo.
- Não tive tempo, professor, o senhor pediu ontem, e eu não vou direto para casa, quando saio da aula, tenho que ir trabalhar, tenho outras aulas.
- Certo...
Respondeu o professor, aceitando que o argumento da falta de tempo realmente era bom, que de um dia para o outro é complicado, já que a estudante, além de estudar, também trabalha. Mesmo achando que o texto solicitado era curto, nada mais do que duas páginas esquemáticas, de fácil compreensão e que poderia ser lido até no banheiro ou durante aquele tempo de espera em que, aparentemente, nada estava fazendo, além de rolar mensagens no WhatsApp. Mesmo assim aceitou o argumento. 
Continuo consultando suas anotações e questionou, interrompendo a menina que voltara a olhar as mensagens no celular:
- E o texto sobre territorialização, já tem duas semanas que pedi, esse deu tempo de ler?
- Também não li.
Disse a estudante, agora desviando o olhar da tela do celular e olhando para o professor, sem disfarçar sua impaciência, quase desafiando.
- Professor, sou honesta, não li esse texto.
O professor, compreendendo que a questão não era só de falta de tempo, também não disfarçou sua impaciência e desta vez não aceitou o argumento.
- E não vai ler?
- Eu não tenho tempo, professor, entre estudar e viver, prefiro viver.
- E por que não está lendo agora?
Perguntou o professor.
- Eu não baixei o texto e não tenho internet, aqui...
Disse ela.
- ...além disso o meu celular já está cheio.
- E porque não carrega o livro?
Insistiu o professor, esperando que a menina compreendesse que falta de tempo não é um argumento muito satisfatório.
- É muito pesado, professor. Já imaginou eu carregando livros nesta bolsa?
Disse apontando a minúscula, mas elegante bolsa.
- Qual o problema em carregar livros?
Falou o professor, estranhando os argumentos da estudante e até se questionando: será que é isso mesmo que estou ouvindo? Talvez ela não estivesse entendendo o que falava, era o que pensava, enquanto falava e tentava estender seu saco de paciência, que ameaçava estourar.
- E como vai aprender, sem tempo para ler?
- Ao menos eu sou honesta professor...
- Honesta?
Interrompeu a fala da estudante, o professor. o saco tinha estourado. 
- ...quando uma pessoa, essa mesma pessoa que você, ao pegar seu diploma deverá jurar cuidar, precisar que saiba fazer algo e não souber, vai dizer o que para ela: “ao menos sou honesta, não sei fazer?” Isso vai adiantar o que? A sua honestidade vale de que, nesta situação? Só honestidade não garante nada. Já ouviu dizer que de boa vontade o inferno está cheio?
- Professor, nota eu tenho para passar e são todas altas, isso é o que importa.

O professor não soube o que dizer. Ficou calado por um tempo, pensando em um argumento que pudesse ser bom o suficiente para usar nesta situação. Não achou e, por sorte, vinha chegando uma das pessoas agendadas para aquele dia.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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