Maria Amélia Mano
Manhã de
segunda-feira, mais uma chance de recomeçar, mas certeza de se
repetir. Periferia, caminhada, ônibus, trem, outro ônibus, cartão ponto e
o plano da dieta. Lá vai Marilda.
No
trem, a voz de sempre: Portas se fecharão. Estação Centro. Saída pela
esquerda. Cuidado com a plataforma. Cuide da limpeza, coloque seu lixo no
local certo. Tenha um bom dia! É gravação. Mas Marilda sempre quer acreditar
que a voz realmente deseja um bom dia. Esperança
que não seja automática
No centro, cigana quer ler mão, loja oferece empréstimo. Marilda compra
brinquedo barato no camelô: cachorrinho que anda e late. Sabe que vai durar
pouco mas garante sorriso do Neguinho que só verá à noite.
No trabalho, o kit de maquiagem para os olhos e boca, base clara. Esconde olheiras de ressaca, de choro, de insônia. Mas é pintura de branco, pensa. Veja se, por gosto, uma negra ia botar batom bege e sombra cinza! Mas tem que estar como exige a chefia.
Assume
o Caixa do Supermercado. Bom dia! Estacionamento? CPF na nota? Crédito ou
débito? Encontrou tudo que desejava? Sente-se como a voz que fala no trem.
Mas é diferente. Marilda deseja bom dia de verdade para os que sorriem com
simpatia e quando também lhe dizem bom dia.
No meio da manhã, ela sente
vontade de fazer xixi mas aprendeu a segurar. Assim como aprendeu a segurar dor
de barriga, náusea, fome, dor nas costas e a raiva do gerente que volta e
meia, se passa, e solta piada sem graça com sorriso de sem
vergonha.
Ao
fim do dia, Marilda sai com parceira do Caixa ao lado, Sueli, pra pegar o
primeiro ônibus. Hoje, faltou dinheiro no caixa da Sueli e vai sair do salário
dela. Sueli está triste, chora, diz que só Jesus na causa e
que o pastor vai ajudar. Marilda consola. Diz que ajuda, empresta. Amiga boa
essa Sueli. Faz luzes acaju no cabelo de Marilda como ninguém.
Só cobra a tinta.

Trânsito
parado. Manifestação. Cansaço. Vão perder o segundo ônibus, depois do trem. As
pessoas gritam: não a projeto de lei tal e fora o presidente.
Marilda coloca a cabeça para fora e pergunta e dizem que é sobre os direitos do
trabalhador. Tempo perdido, pensa. Isso já se tem pouco. Nenhum presidente faz
diferença.
Ainda no ônibus, lembra de avisar o Nego que vai atrasar.
Também que ele dê o leite do Neguinho e bote na cama e arrume as coisas pra
escola. O Nego é capaz de ainda querer coisinha. Mas vai
chegar exausta e, agora, é até melhor chegar mais tarde, pensa e divide com a
amiga. Riem juntas, cansadas.
Saem do ônibus e pegam o trem lotado pelo caos no trânsito. Já sabem que o segundo ônibus é perdido para as duas. Saem do trem e ainda na parada, bate a fome. A conversa é boa e se apoiam na exaustão e na injustiça. Resolvem comer um pastel. O dono do quiosque é homem marombado com tatuagem de leão no braço. Coisa linda de ver. Se o Nego desconfia...
Saem do ônibus e pegam o trem lotado pelo caos no trânsito. Já sabem que o segundo ônibus é perdido para as duas. Saem do trem e ainda na parada, bate a fome. A conversa é boa e se apoiam na exaustão e na injustiça. Resolvem comer um pastel. O dono do quiosque é homem marombado com tatuagem de leão no braço. Coisa linda de ver. Se o Nego desconfia...
Marilda
propõe uma cerveja. Merecemos, diz ela. Mas Sueli fica na dúvida
porque o pastor condena. Ele vai ser candidato a vereador pra ajudar a gente toda. Marilda insiste, é devota de Santa Rita e
consulta Pai Sérgio de Oxalá mas diz nada para a amiga. Não quer magoar. Sueli
é amiga boa, tem mais é que se segurar na igreja, marido ruim que bebe. Uma vez
Sueli apareceu com olho roxo no trabalho. Haja base!
Sueli aceita a cerveja,
finalmente. Quando estão na segunda garrafa, toca a música da Ludmila: cheguei!
cheguei chegando, bagunçando a zorra toda e que se dane, eu quero mais é que se
exploda. Não é que a
Sueli sabia a letra toda, até a versão “proibidona”? Se o Pastor desconfia...
Na terceira cerveja, combinam levar os filhos pra ver a árvore de natal
no shopping. Quem sabe combinam um bolão da megasena com as gurias do trabalho.
Daí o natal pode ficar mais gordinho. Verdade que ganham cesta de natal do
Supermercado, mas é sempre a mesma coisa. O bom é ter uma coisa diferentinha na
mesa. E volta o dono do quiosque, mais bonito que nunca. Mais uma! Pede Sueli.
Marilda
ri e ri, leve. Sueli também. Chegam atrasadas em casa. Só o tempo de deitar e
dormir. O cachorrinho de brinquedo do camelô para o Neguinho fica pra
amanhã de noite. A dieta fica pra próxima segunda. E o sonho, esse fica
sempre, que nem a esperança, em cada voz desejando bom dia no trem.
Título: Ludmila
Grafite: Tinta Crua - Lisboa
Grafite: Tinta Crua - Lisboa
Texto para o Seminário da Liga de Medicina de Família e Comunidade da PUC-Porto Alegre- realizado dia 11/11/2017 - II Simpósio de Populações Vulneráveis - Mulheres de Periferia
Amélia, que lindo!
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