09 janeiro 2018

PORQUE NINGUÉM VAI ESTRAGAR MEU DIA


Maria Amélia Mano

Manhã de segunda-feira, mais uma chance de recomeçar, mas certeza de se repetir. Periferia, caminhada, ônibus, trem, outro ônibus, cartão ponto e o plano da dieta. Lá vai Marilda.
  
            No trem, a voz de sempre: Portas se fecharão. Estação Centro. Saída pela esquerda. Cuidado com a plataforma. Cuide da limpeza, coloque seu lixo no local certo. Tenha um bom dia! É gravação. Mas Marilda sempre quer acreditar que a voz realmente deseja um bom dia. Esperança que não seja automática 

No centro, cigana quer ler mão, loja oferece empréstimo. Marilda compra brinquedo barato no camelô: cachorrinho que anda e late. Sabe que vai durar pouco mas garante sorriso do Neguinho que só verá à noite.

            No trabalho, o kit de maquiagem para os olhos e boca, base clara. Esconde olheiras de ressaca, de choro, de insônia. Mas é pintura de branco, pensa. Veja se, por gosto, uma negra ia botar batom bege e sombra cinza! Mas tem que estar como exige a chefia. 

          Assume o Caixa do Supermercado. Bom dia! Estacionamento? CPF na nota? Crédito ou débito? Encontrou tudo que desejava? Sente-se como a voz que fala no trem. Mas é diferente. Marilda deseja bom dia de verdade para os que sorriem com simpatia e quando também lhe dizem bom dia.

            No meio da manhã, ela sente vontade de fazer xixi mas aprendeu a segurar. Assim como aprendeu a segurar dor de barriga, náusea, fome, dor nas costas e a raiva do gerente que volta e meia, se passa, e solta piada sem graça com sorriso de sem vergonha.

            Ao fim do dia, Marilda sai com parceira do Caixa ao lado, Sueli, pra pegar o primeiro ônibus. Hoje, faltou dinheiro no caixa da Sueli e vai sair do salário dela. Sueli está triste, chora, diz que só Jesus na causa e que o pastor vai ajudar. Marilda consola. Diz que ajuda, empresta. Amiga boa essa Sueli. Faz luzes acaju no cabelo de Marilda como ninguém.https://blogger.googleusercontent.com/img/proxy/AVvXsEjZOFfvth_jNezy9BgRdM7wTK8En1DSWZ28nuc0NHwmJzDpfLiFu7hzecuBOWFa0HOyhi-1caWmaJNcx3p8qqMbQVeQK16VkE3GXdhwJ5lTo_V4fX84Wv5n2M0jWuwit4mw54b0lZkXjaZ-ZVQeq-MKCzBbxfSYFdz-xw3Z=s0-d-e1-ft Só cobra a tinta.

            Trânsito parado. Manifestação. Cansaço. Vão perder o segundo ônibus, depois do trem. As pessoas gritam: não a projeto de lei tal e fora o presidente. Marilda coloca a cabeça para fora e pergunta e dizem que é sobre os direitos do trabalhador. Tempo perdido, pensa. Isso já se tem pouco. Nenhum presidente faz diferença.

            Ainda no ônibus, lembra de avisar o Nego que vai atrasar. Também que ele dê o leite do Neguinho e bote na cama e arrume as coisas pra escola. O Nego é capaz de ainda querer coisinha. Mas vai chegar exausta e, agora, é até melhor chegar mais tarde, pensa e divide com a amiga. Riem juntas, cansadas.

            Saem do ônibus e pegam o trem lotado pelo caos no trânsito. Já sabem que o segundo ônibus é perdido para as duas. Saem do trem e ainda na parada, bate a fome. A conversa é boa e se apoiam na exaustão e na injustiça. Resolvem comer um pastel. O dono do quiosque é homem marombado com tatuagem de leão no braço. Coisa linda de ver. Se o Nego desconfia...
  
            Marilda propõe uma cerveja. Merecemos, diz ela. Mas Sueli fica na dúvida porque o pastor condena. Ele vai ser candidato a vereador pra ajudar a gente toda. Marilda insiste, é devota de Santa Rita e consulta Pai Sérgio de Oxalá mas diz nada para a amiga. Não quer magoar. Sueli é amiga boa, tem mais é que se segurar na igreja, marido ruim que bebe. Uma vez Sueli apareceu com olho roxo no trabalho. Haja base!

            Sueli aceita a cerveja, finalmente. Quando estão na segunda garrafa, toca a música da Ludmila: cheguei! cheguei chegando, bagunçando a zorra toda e que se dane, eu quero mais é que se exploda. Não é que a Sueli sabia a letra toda, até a versão “proibidona”? Se o Pastor desconfia...

Na terceira cerveja, combinam levar os filhos pra ver a árvore de natal no shopping. Quem sabe combinam um bolão da megasena com as gurias do trabalho. Daí o natal pode ficar mais gordinho. Verdade que ganham cesta de natal do Supermercado, mas é sempre a mesma coisa. O bom é ter uma coisa diferentinha na mesa. E volta o dono do quiosque, mais bonito que nunca. Mais uma! Pede Sueli.

            Marilda ri e ri, leve. Sueli também. Chegam atrasadas em casa. Só o tempo de deitar e dormir. O cachorrinho de brinquedo do camelô para o Neguinho fica pra amanhã de noite. A dieta fica pra próxima segunda. E o sonho, esse fica sempre, que nem a esperança, em cada voz desejando bom dia no trem.



Título: Ludmila
Grafite: Tinta Crua - Lisboa
Texto para o Seminário da Liga de Medicina de Família e Comunidade da PUC-Porto Alegre- realizado dia 11/11/2017 - II Simpósio de Populações Vulneráveis - Mulheres de Periferia

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