Felicidade. Alice, 2017. |
Ernande
Valentin do Prado
Quando o pai
entrou no quarto, pouco antes das oito horas, a menina dos olhos amarelos disse:
- A
brinquedoteca já abriu?
- Ainda não.
Respondeu o pai.
Era o primeiro
dia que ficava sem soro fisiológico constante. Os últimos exames mostravam que
o soro não era mais necessário, não trazia benefícios, como se imaginava e
poderia até estar sendo um problema, disse a médica ao anunciar que o
suspenderia.
Agora estava
mais livre, podia caminhar ou ver tv no corredor, ir para brinquedoteca sem se
preocupar se iria receber pouco soro.
- Vamos comer,
depois vou ver se abriu...
Aproveitou o
homem para estimular a menina a comer, coisa que era muito difícil. Não estou
com fome, foi o que ela respondeu. O homem foi firme: sem comer não dá para
ficar na brinquedoteca: vai que desmaia de fraqueza lá?
- Pai, eu estou
internada na brinquedoteca, tenho que ficar lá...
Disse sorrindo a
menina, mais uma vez não aparentando estar doente. Nem parecia a mesma menina
que no dia anterior chorou se dizendo muito nova para morrer.
Na porta da
brinquedoteca agarrou o trinco, abriu, viu o rapaz da limpeza e perguntou: já
posso entrar? Ele pareceu contrariado, indeciso, mas não conseguiu dizer que
não.
A menina entrou,
a psicopedagoga, que já estava lá, perguntou: quer ouvir uma história?
- Quero...
Respondeu a
menina sem pensar, sem esconder a satisfação e o enorme sorriso que disfarçava
os olhos amarelos, quase alaranjados.
Ouviu, depois
chegou outra criança, quando a história já estava no meio. A menina contou a
história para ele, depois desenharam, pintaram, jogaram, viram vídeos. Foram
comer: recusou, de novo, o almoço:
- Essa comida é
ruim e tá fria...
Comeu duas
colheradas de um macarrão excessivamente cozido, só para não parecer que não
estava cumprindo seu acordo com o pai. Na boca o macarrão virava uma pasta, que
ela fazia questão de mostrar ao pai e comparar com a cola que usava para fixar
figuras no caderno.
Esperou ansiosa
o tempo passar até a brinquedoteca abrir novamente, voltou para lá. Às 17
horas, quando saiu, junto com as funcionárias e as extensionistas, estudantes
de terapia ocupacional, de fonoaudiologia, psicologia, enfermagem, disse,
abraçada ao pai e caminhando pelo corredor de volta ao quarto:
- Não falei, tô
internada na brinquedoteca...
- Um dia
bom, apesar de tudo...
Pensou o pai.
Pensou o pai.
[Ernande Valentin do
Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Partes já publicadas:
Adorei essa série, obrigada Ernande e Alice. Apesar da dificuldade da internação, ainda assim as levezas e negociações deste diário. Abraços apertados.
ResponderExcluirApesar da tristeza, não foram só descobertas negativas. Houve, como mostra a série, boas surpresas.
ExcluirMuito rico esses depoimentos. Virei fã da série. Cada relato, um misto de tristeza e alegria ao acompanhar cada trecho dessa história, me peguei várias vezes chorando, e rindo também com cada conquista e surpresa. E deixou a reflexão para pensarmos que tipo de profissionais somos? Que tipo de seres humanos ? E no fim ficou o quanto ainda precisamos seguir...
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