13 fevereiro 2018

CASINHA


Maria Amélia Mano

A casinha era algo colo, algo abraço, algo aconchego. Na frente, escadinha pequena e portão baixo de ranger e pular por cima. Algum menino, um dia, deve ter feito isso como se fosse grande aventura. Havia arcos e uma pequena área de entrada onde cadeiras de balanço acolhiam as pessoas, antes mesmo que fossem convidadas a sentar. Tapete de crochê e jarros de flores.

Única entre grandes edifícios residenciais, a casinha, em lugar mais rebaixado que a rua asfaltada - certamente porque teria sido construída antes do asfalto - era pura resistência e existência. Existência de alguma poesia tecida em antigas cortinas de algodão um pouco surradas pela tisna dos canos de escapamento dos carros, apertada, oprimida pelo moderno concreto da cidade.

            Era ali que ela ficava, aponta e me explica Dagoberto, o cobrador de ônibus que passa pela rua e pela casinha todos os dias.  A dona, a velhinha, devia ter 90 anos e todas as manhãs varria a calçada com vassoura de galhos. Vassoura de galhos! Repito, entre um solavanco e uma curva, onde me seguro na cadeira. Dagoberto confirma com um balanço de cabeça. Sim, coisa antiga, coisa de roça, coisa de avó distante. É coisa linda de ver e lembrar.

Entre um troco e outro, Dagoberto sorri ao falar da casinha, da velhinha, da vassoura de galhos. Sorri ao falar da infância, da origem rural e da avó. Tem 56 anos e 30 anos de cidade grande, 10 anos de cobrador de ônibus, mas já fez de tudo, muito, sempre ganhando pouco. Como pouco deve valer a casinha, pequena, antiga, cheia de reparos. Mas é lugar bom, valorizado. Alguma construtora havia de derrubar e fazer edifício, um dia.

Uma manhã, faz duas semanas, depois de 10 anos, não mais viu a velhinha na calçada. Assim me conta Dagoberto incomodado. E tece muitas hipóteses. Pode ter falecido, podem ter colocado em asilo, pode ter sido assaltada e resolveram colocar em apartamento, pode os filhos terem vendido a casinha pra construtora. O fato é que ela não estava mais ali, há duas semanas e ele sentia falta.

Dagoberto sentia falta de algo antigo e familiar, distante e próximo. Memória. A flor que nascia no asfalto. Ainda em viagem, falamos sobre os edifícios feios da rua em que passamos. E desejamos que a casinha e o portão de menino pular não sejam engolidos. Que ela seja tombada, junto com as cortinas e o tapete e as cadeiras de balanço. Tombada pelo patrimônio afetivo-poético. Que vire pequeno museu de cidade que ainda tem alma.

Quando chega a minha parada e puxo a cordinha para sair, me levanto e aponto uma nova hipótese: a velhinha pode estar internada ou doente. Quem sabe, ainda aparece, um dia. Me despeço, tentando dar um consolo, uma esperança. E seguimos, cada um, com seus caminhos.

            Já caminhando, penso em duas pessoas, dois desconhecidos, eu e Dagoberto, dividindo histórias em um tempo-trajeto. Penso em Dagoberto e na velhinha que sempre se encontraram, mas nunca se encontraram, de fato, e nunca se encontrarão, talvez. Nesse mundo de tantas vias, estradas, tantas catracas, tantas paradas e pontos, encontros, terminais...

Dagoberto e a velhinha da vassoura de galhos, essa que é tal qual ninho de pássaro, chave de porta mágica de lembranças. Lembranças que fazem menos cinza o dia e o cansaço de Dagoberto. Dagoberto, o cobrador de ônibus que nasceu em casinha de roça, onde vó varria alpendre com vassoura de galhos. E, todas as manhãs, por 10 anos, no meio do concreto, por minutos, ele pôde voltar para a casa de infância.

Ilustração: Marco Somà

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