09 fevereiro 2018

FÉ, ESPERANÇA, UTOPIA, ILUSÃO

Colorido. Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Uma cicatriz na coxa esquerda. Ia do joelho até em cima, escondendo-se por baixo do shorts, onde ver mais não dava.
Como terá conseguido tal marca?
Cirurgia, facada numa briga doméstica, acidente em uma fuga?
Por que isso me incomoda tanto e faz minha imaginação voar?
A mulher em minha frente... mulher? Não, só uma menina, talvez uns quinze anos, um metro e setenta de altura, cabelos crespos amarrados no alto da cabeça. Mulata, corpo esguio, barriga redonda, de uns sete meses, no mínimo. Ela está debruçada sobre o bebedouro, ao lado da pia onde uma torneira não para de pingar. Do seu lado outra menina: mesma cara de criança, mesmo tamanho de barriga, mas sem a cor impressionante da colega. É branca, cheia de sardas no rosto, cabelos loiros escorrido pelos ombros. Na perna esquerda não tem cicatriz, só uma tatuagem colorida, um filtro de sonhos com penas vermelhas e amarelas, que vai do joelho até onde não se vê mais, embaixo dos shorts, outra do tornozelo até quase o joelho, mas não consigo identificar as formas do desenho, só as mesmas cores vivas.
Tenho a impressão imprecisa (plagiando Humberto Gessinger) e cruel, de que não tem cicatriz, não ainda.
A estatística aqui, mas não só aqui, é foda, cruéis mesmo. São 99 pobres coitados para cada um milionário e estes diminuem a cada dia, enquanto o número de pobres só aumentam, um verdadeiro exército de mão de obra só esperando a “classe produtiva” os recrutar, enquanto serve de termômetro para os baixos salários... baixos? Não, nem chegam a ser baixos, são ridículos, são humilhantes, são dignos de uma revolta generalizada, que ainda não veio, mas bastilhas sempre caem, só esperar (e talvez ajudar a empurrar).
Também não dá para ficar disfarçando, falando em classe produtiva, em empresariado, são burgueses, parasitas, sanguessugas, desumanos que se comportam como vírus, sempre dependendo dos mecanismos do hospedeiro e sem nenhum pudor, prontos a destruí-lo, sem culpa, sem remoço, mesmo morrendo junto. Essa é natureza da burguesia.  
Parece que não basta Deus para dar jeito nisso e os homens? Bem! Os homens “prometem, prometem, pura palhaçada”, como diz o Genival Oliveira Gonçalves, mais conhecido como GOG. Não interessa resolver. Com o problema, podem continuar prometendo. A promessa é, de alguma maneira, mobilizadora, podem continuar e continuar prometendo indefinidamente, sempre vai ter quem acredita, quem ganhe para acreditar, quem dependa de acreditar para manter seu emprego e, por isso, mobilizar outros para continuar acreditando. E a roda continua girando. O sistema é foda, diria o Capitão Nascimento.
Os filhos que vão nascer, das meninas com cicatrizes, das meninas com tatuagem ou simplesmente por viver aqui, mesmo sem cicatrizes, sem tatuagem, já nascem com etiqueta no peito e vale quase nada. Os filhos e filhas vão alimentar o exército de empregadas domésticas, de operários, de faz tudo, de faz nada à preço injusto, aviltante, humilhante. Vão limpar, passar, cozinhar, arrumar, passear com filhos e cachorros de quem elas nunca serão nem sequer amigas. A ilusão é mobilizadora.
Contrariando os números, toda essa gente que já nasce com etiqueta, continua sonhando e esperando uma vida melhor, que virá para quase nenhuma.
Me distrai...
Na minha frente uma criança, três, quatro anos. Miudinha, falante, exigente de atenção.
 O que você tá fazendo?
Pergunta ela, quase não entendo suas palavras. Uma dificuldade em articular os sons, talvez língua presa.
 Não estou fazendo nada e você?
 Eu vim com minha mãe!
Diz ela, mas não compreendo o que veio fazer e resolvo não perguntar mais, depois da terceira vez.
Fico olhando a menina, que não para de contar alguma coisa que não entendo e pensando nas estatísticas: qual a chance dela não se tornar empregada doméstica, não levar uma facada?
Deus vai ajudar ou terá ela que se virar sozinha para não seguir o mesmo destino das vizinhas?
Fé, esperança, utopias, tudo isso é fundamental e devemos cultivar, para não ficar paralisados, mas não dá para esquecer, o que já disse antes, a estatística é foda e a ilusão mobilizadora.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


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