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Colorido. Imagem capturada na internet, 2017. |
Ernande
Valentin do Prado
Uma cicatriz na
coxa esquerda. Ia do joelho até em cima, escondendo-se por baixo do shorts,
onde ver mais não dava.
Como terá
conseguido tal marca?
Cirurgia, facada
numa briga doméstica, acidente em uma fuga?
Por que isso me
incomoda tanto e faz minha imaginação voar?
A mulher em minha
frente... mulher? Não, só uma menina, talvez uns quinze anos, um metro e
setenta de altura, cabelos crespos amarrados no alto da cabeça. Mulata, corpo
esguio, barriga redonda, de uns sete meses, no mínimo. Ela está debruçada sobre
o bebedouro, ao lado da pia onde uma torneira não para de pingar. Do seu lado
outra menina: mesma cara de criança, mesmo tamanho de barriga, mas sem a cor
impressionante da colega. É branca, cheia de sardas no rosto, cabelos loiros
escorrido pelos ombros. Na perna esquerda não tem cicatriz, só uma tatuagem
colorida, um filtro de sonhos com penas vermelhas e amarelas, que vai do joelho
até onde não se vê mais, embaixo dos shorts, outra do tornozelo até quase o
joelho, mas não consigo identificar as formas do desenho, só as mesmas cores
vivas.
Tenho a impressão
imprecisa (plagiando Humberto Gessinger) e cruel, de que não tem
cicatriz, não ainda.
A estatística aqui, mas não só aqui, é foda, cruéis mesmo. São 99 pobres coitados para cada
um milionário e estes diminuem a cada dia, enquanto o número de pobres só
aumentam, um verdadeiro exército de mão de obra só esperando a “classe
produtiva” os recrutar, enquanto serve de termômetro para os baixos salários...
baixos? Não, nem chegam a ser baixos, são ridículos, são humilhantes, são
dignos de uma revolta generalizada, que ainda não veio, mas bastilhas sempre
caem, só esperar (e talvez ajudar a empurrar).
Também não dá para
ficar disfarçando, falando em classe produtiva, em empresariado, são burgueses,
parasitas, sanguessugas, desumanos que se comportam como vírus, sempre
dependendo dos mecanismos do hospedeiro e sem nenhum pudor, prontos a
destruí-lo, sem culpa, sem remoço, mesmo morrendo junto. Essa é natureza da
burguesia.
Parece que não
basta Deus para dar jeito nisso e os homens? Bem! Os homens “prometem,
prometem, pura palhaçada”, como diz o Genival Oliveira Gonçalves, mais
conhecido como GOG. Não interessa resolver. Com o problema, podem
continuar prometendo. A promessa é, de alguma maneira, mobilizadora, podem
continuar e continuar prometendo indefinidamente, sempre vai ter quem acredita,
quem ganhe para acreditar, quem dependa de acreditar para manter seu emprego e,
por isso, mobilizar outros para continuar acreditando. E a roda continua
girando. O sistema é foda, diria o Capitão Nascimento.
Os filhos que vão
nascer, das meninas com cicatrizes, das meninas com tatuagem ou simplesmente
por viver aqui, mesmo sem cicatrizes, sem tatuagem, já nascem com etiqueta no
peito e vale quase nada. Os filhos e filhas vão alimentar o exército de
empregadas domésticas, de operários, de faz tudo, de faz nada à preço injusto,
aviltante, humilhante. Vão limpar, passar, cozinhar, arrumar, passear com
filhos e cachorros de quem elas nunca serão nem sequer amigas. A ilusão é
mobilizadora.
Contrariando os
números, toda essa gente que já nasce com etiqueta, continua sonhando e
esperando uma vida melhor, que virá para quase nenhuma.
Me distrai...
Na minha frente uma
criança, três, quatro anos. Miudinha, falante, exigente de atenção.
Pergunta ela, quase
não entendo suas palavras. Uma dificuldade em articular os sons, talvez língua
presa.
Diz ela, mas não
compreendo o que veio fazer e resolvo não perguntar mais, depois da terceira
vez.
Fico olhando a
menina, que não para de contar alguma coisa que não entendo e pensando nas
estatísticas: qual a chance dela não se tornar empregada doméstica, não levar
uma facada?
Deus vai ajudar ou
terá ela que se virar sozinha para não seguir o mesmo destino das vizinhas?
Fé, esperança,
utopias, tudo isso é fundamental e devemos cultivar, para não ficar
paralisados, mas não dá para esquecer, o que já disse antes, a estatística é foda e a ilusão mobilizadora.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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