13 março 2018

46.2


Maria Amélia Mano

Olho a menina assustada, de longe e de perto. Ela no alto do beliche. Sente frio pelo ventilador de teto tão próximo. Leva seus tesouros para a cama. Pouca coisa. O mais especial: um rádio gravador. E se encanta com a FM. Com o tanto de música que ela pode ouvir, que existe, que pega.

            Menina encolhida no beliche, com seus tesouros e músicas de sonhar, ir longe, longe. Travesseiro de moranguinho. Saudades de casa. Tanta coisa pra viver. Sabe que está só começando. Sente-se pequena, mas forte. Sente-se esperançosa e gosta da aventura de mudar.

Menina nem sempre acredita em mágica, mas quando está triste, fica buscando sinais, motivos. Pode ser só uma borboleta, um pássaro. Isso desde sempre. Busca respostas onde não encontra razões. Pergunta, sente, quer que o mundo seja mais do que isso que se apresenta, às vezes.

            Não se conforma com a falta de sentido, com a falta, tantas faltas. Não é fácil, menina. Não será. Nunca será. Sabemos. Daí é preciso desabafar e desabar em palavras, em caligrafias inventadas. Daí ela escreve diários e eu, eu, agora, escrevo histórias. São nossas pequenas aventuras. Aí nos encontramos, acordadas.

            Hoje, olho aquela menina e sinto orgulho, sinto carinho e ternura. Olho para mim e queria que, de longe, de perto, ela sentisse o mesmo de onde ela está. Será que sou o que ela esperava? Será que correspondo às expectativas dela? Será que sente orgulho de mim?

            Menina, me visite em sonhos. Sinto sua falta, às vezes. Sei que está aí, que está aqui, aqui dentro, sei que está. Quando escrevo, quando sonho, quando quero mudar. Me visite em sonho. Para que a gente se reencontre, se abrace, se fale e ouça nossas canções de muitos tempos.

            Sei que nossa conversa poderia ser bonita. Poderíamos nos confessar: ainda sentimos medo. Ainda trememos de frio. Mas ainda somos fortes. Somos uma. Somos as mesmas e a mesma. Agora, eu, mais cansada, deixaria que fizesses cafuné nos meus cabelos grisalhos, até que eu adormecesse no teu colo.

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