Maria Amélia Mano
Foi em alpendre de casa
na roça que Jaqueline me ensinou: amiga, mira,
não treme e puxa o gatilho! Na lente, na mirada, lembrei do meu fracasso no
microscópio, meu déficit de atenção, minha péssima concentração, minha
antipatia por armas, o desconforto do estouro, o cheiro ruim de pólvora, a
falta de sentido daquilo tudo. Mas, pela Jaque, fui, fiz e a garrafinha de
plástico se moveu no chão. Pasmem: acertei! Após silêncio e espanto, aplauso e certeza
de que, naquele momento, coisas especiais estavam acontecendo.
Família, no carro, perto
da praia, avista dunas e cheira maresia: anúncio de dias azuis. Casal termina
namoro que precisava terminar há tempos: livres! Em Minas, sai uma fornada de
broa de milho com erva doce em forno a lenha. No sinal, os motoristas aplaudem
o imigrante tocando kalimba e, no calçadão, os velhinhos do dominó aplaudem a mocinha
da fronteira que canta tangos, boleros e fados antigos. Um pouco de Raul e Belchior
também: galos, noites e quintais. E todos choram: imigrante, mocinha, velhinhos,
passantes, motoristas, até o guarda de trânsito. Até vocês.
Menino ganha cão que vai
marcar os próximos 15 anos de sua existência. Senhora já de fundas rugas nos
olhos, entra na igreja pra casar com vestido de noiva da mãe, como sonhou. Felizes
mesmo que ele, o vestido, ela, a noiva e ele, o noivo, já tenham algumas marcas
e remendos de vida. Bisturi tira tumor de mulher jovem, ali, todo ele,
delimitado e vencido. Renascida, ela vai mudar rumo e destino. Cheiro morno em
sala de parto: nasce mais um homem no mundo. Chove depois do mormaço. Alguém
está largando tudo, mas tudo mesmo, agora, já. Atenção, telespectadores: vai
recomeçar. Palmas!
É Quatro Estações de
Vivaldi em serrote ou folha na boca e até acredito em Deus e reaprendo a rezar,
basta que alguém comece, que nunca soube começar reza. E, imaginem, alguém
começa. Abraço pé de flor branca e cheirosa, predileta da avó, ensaio dança de
São João. Aprendo tabuada do oito e do nove e acho que já sei de tudo na vida. É
John Wayne com meu pai e todas as músicas com banjo e sanfona: Dominguinhos e
todas as salas de reboco. A janela, veneziana, sol entrando e aquecendo meus pés,
aos poucos, certeza de que ele virá, por inteiro, o sol, encher meu corpo das
listras do dia.
Aquela noite em que esperei
primeiro amor, brilho de lua no olhar, quase como sorriso surpreso da Jaque,
amiga de 30 anos. Não, não foi luz, sorriso, nem tiro certo que fez tudo isso
vir, assim, feito susto, feito chuva, feito beijo roubado, feito esse jeito, foi
não. Sei que não volto mais nele mas ele volta em mim e volto a ser a menina
que fui, sempre, descalça em ladrilho ou cimento. Sim, acreditem, tudo, tudo é
por conta do alpendre, dos alpendres. Mais que os quintais, único e igual a
muitos em que já viajei em brincadeira, sonho, rádio AM e balanço de rede. É
ele, o alpendre. Confesso.
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