Maria Amélia Mano
Você me ensina a dobrar as meias de um
jeito que não se perca o par, que não se
perca o par. Me diz pra botar pauzinho de canela no chá quente, pra deixar
gengibre, anis estrelado e casca de limão na água. Me presenteia com o olhar de
todas as mães e manhãs, olhar da flor que cultiva, que pegou de galho roubado
que esse é o que pega mais forte.
Flor sem nome, engraçada, que muda de cor com tempo. Nosso tempo.
É pétala rosa leve, breve, outono e
primavera, camada fina de pó no rosto, seda, pelúcia, brisa, neblina, orvalho,
risinho, carícia, suspiro, sussurro. Olhar do pai quando ouve as mesmas canções
do Roberto, da vó quando sabia que ia morrer, quando todos sabíamos. Da irmã
quando conheceu Teresa, da outra irmã quando se formou. Inteiro-coração, em calma
leveza de pólen. Nossas sementes.
É pétala carmim, verão e inverno,
tafetá, brilho, vendaval, chuva de gota grossa, granizo, engasgo, gargalhada, choro,
abraço apertado, grito. Olhar recém-nascido do primeiro sobrinho, da irmã
quando passou no vestibular, da vó quando cheguei no Sul, pra sempre, de todos
nós quando a vó se foi, da outra irmã quando perdeu filho, quando pariu filho.
Coração explodindo, aos pedaços, em urgentes intensidades. Nossas intensidades.
É pétala misturada, multicor, furta-cor,
caos bonito, dia de sol e chuva, choro e riso. Olhar da vó rindo de si mesma,
das irmãs rindo dos risos dos filhos, da gente rindo do pai que diz usar mesmo
xampu pra caspa do Ronaldinho Fenômeno (ou Cristiano Ronaldo?). Fenômeno é essa
flor de café com pão, manjericão, coração de cotidiano, rindo, de batom claro
pra sair bonito em foto de família. Família é você, jardineira de galhos
roubados, flor sem nome. Nossas flores.
As flores com aquelas pétalas cúmplices,
testemunhas, de espiar, de olhar. O olhar do menino grande que espera adoção no
abrigo; da menina refugiada com fome na fila da comida que nem sabe qual é; do
idoso que coloca anúncio de amor desejado no jornal e se arruma pra encontro na
padaria; do sobrevivente que procura restos de
um lar em escombros de catástrofe. Apostas de inteiravida, vida inteira. Nossa
vida.
Quando sinto medo, coloco
a cabeça entre os joelhos tapando os ouvidos. Vem flor do galho roubado, vem
gari analfabeta que varre passarela subterrânea com detergente que compra pra
deixar o vão insalubre com cheiro de pinho. Tantas histórias. Toda prosa, toda
poesia, imensidão, sua flor, seu jardim me ensina espera, esperança, bondade do
mundo inteiro, inteiromundo. Nosso mundo.
Seu chá quente com pauzinho de canela, a
água com gengibre, anis estrelado e casca de limão me fazem alguém melhor. E
juro, me esforço pra dobrar as meias de um jeito que não se perca o par, que não se perca o par.
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