07 agosto 2018

GENGIBRE, LIMÃO, ANIS, CANELA E PÉTALA DE FLOR


Maria Amélia Mano

Você me ensina a dobrar as meias de um jeito que não se perca o par, que não se perca o par. Me diz pra botar pauzinho de canela no chá quente, pra deixar gengibre, anis estrelado e casca de limão na água. Me presenteia com o olhar de todas as mães e manhãs, olhar da flor que cultiva, que pegou de galho roubado que esse é o que pega mais forte. Flor sem nome, engraçada, que muda de cor com tempo. Nosso tempo.

É pétala rosa leve, breve, outono e primavera, camada fina de pó no rosto, seda, pelúcia, brisa, neblina, orvalho, risinho, carícia, suspiro, sussurro. Olhar do pai quando ouve as mesmas canções do Roberto, da vó quando sabia que ia morrer, quando todos sabíamos. Da irmã quando conheceu Teresa, da outra irmã quando se formou. Inteiro-coração, em calma leveza de pólen. Nossas sementes.

É pétala carmim, verão e inverno, tafetá, brilho, vendaval, chuva de gota grossa, granizo, engasgo, gargalhada, choro, abraço apertado, grito. Olhar recém-nascido do primeiro sobrinho, da irmã quando passou no vestibular, da vó quando cheguei no Sul, pra sempre, de todos nós quando a vó se foi, da outra irmã quando perdeu filho, quando pariu filho. Coração explodindo, aos pedaços, em urgentes intensidades. Nossas intensidades.

É pétala misturada, multicor, furta-cor, caos bonito, dia de sol e chuva, choro e riso. Olhar da vó rindo de si mesma, das irmãs rindo dos risos dos filhos, da gente rindo do pai que diz usar mesmo xampu pra caspa do Ronaldinho Fenômeno (ou Cristiano Ronaldo?). Fenômeno é essa flor de café com pão, manjericão, coração de cotidiano, rindo, de batom claro pra sair bonito em foto de família. Família é você, jardineira de galhos roubados, flor sem nome. Nossas flores.

As flores com aquelas pétalas cúmplices, testemunhas, de espiar, de olhar. O olhar do menino grande que espera adoção no abrigo; da menina refugiada com fome na fila da comida que nem sabe qual é; do idoso que coloca anúncio de amor desejado no jornal e se arruma pra encontro na padaria; do sobrevivente que procura restos de um lar em escombros de catástrofe. Apostas de inteiravida, vida inteira. Nossa vida.

Quando sinto medo, coloco a cabeça entre os joelhos tapando os ouvidos. Vem flor do galho roubado, vem gari analfabeta que varre passarela subterrânea com detergente que compra pra deixar o vão insalubre com cheiro de pinho. Tantas histórias. Toda prosa, toda poesia, imensidão, sua flor, seu jardim me ensina espera, esperança, bondade do mundo inteiro, inteiromundo. Nosso mundo.

Seu chá quente com pauzinho de canela, a água com gengibre, anis estrelado e casca de limão me fazem alguém melhor. E juro, me esforço pra dobrar as meias de um jeito que não se perca o par, que não se perca o par.



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