04 setembro 2018

MINHAS NOITES COM O PEIXE BOI


Maria Amélia Mano

O vulcão Fuego está em erupção na Guatemala e minha mãe tem absoluta certeza de que saio amarrotada de casa. Muito importante isso de sair engomada, roupa bem passada. Deve ser prova de boa educação, que houve sucesso no ofício de me criar. Quando eu lambia reboco de parede, comia terra e Vick Vaporub, ela me desculpava, justificava: é vermes ou nervos ou carência. Essa última, provável motivo de culpa. Mães se culpando e filhos só querendo descobrir a vida em novos sabores.

Sobre sabores, há fases. Sim, uma hora a gente quer novidade. Outra, só quer o antigo, o conhecido, o protegido, o seguro: momentos de hibernação consentida. Nem todos estão dispostos a ficar nas filas de boates, correr nas savanas; nem todos podem e precisam ter a sensualidade da pantera, do guepardo. Todos felinos lindos, mas desconfiados e tensos. Obrigação de ser veloz, de ser fatal. Por isso escolhi ele, mamífero de água quente e rasa cuja diversão maior é rodar lentamente sobre o próprio corpo cilíndrico. Boto cor-de-rosa? Não, muita sedução para o momento.

Comprei um peixe-boi cinza de pano, material molengo de bolinhas, marca de travesseiros de viagem. Espatifei ele na minha cama, satisfeita com a nova companhia em tempos de solitude desejada. Aquela entressafra entre um amor e outro, vaziozinho necessário em que o mais sexy que conseguimos ser é dormir com camiseta do Aedes, o mosquito da dengue que não é dengo. Dengo é se deixar identificar, sem culpa, com John Denver e ele, o peixe que não é peixe, rodando em volta de si, em absoluta calma de rio morno amazônico. Restrições de movimento abaixo de 15 graus. Delícia!

E o amigo fofo sugere tempos de experimentações. Curso de Florais de Bach para animais, aprofundamento em levedura de cerveja, terapia xamânica, alinhamento de chacras, oratória e liderança, francês com refugiados, manipulação de marionetes, pandeiro, crônicas, o-que-você-sempre-quis-fazer, sim, o tempo é seu! Perca ele em tardes filosóficas estabelecendo diferença entre canjica, polenta, pamonha, mungunzá e cuscuz. Responda pesquisas de satisfação e, por favor, não trate mal a menina do telemarketing. Só minta que viajará sem data de volta e a chame de querida. Ninguém a trata bem.

 Em uma noite, o peixe-boi cairá da cama dando espaço para um outro ser que, espera-se, seja também mamífero, mas role mais na sua volta do que em volta de si próprio, mas nunca se sabe. Calma! O fofo continuará lá, fiel, para momentos seus, só seus, valiosos momentos. Aqueles em que não se tenta convencer ninguém, nem a gente, de nada. Mas não saia de roupa amarrotada em sinal de liberdade. Mãe não é peixe-boi, não estará sempre junto se culpando e justificando nossos sabores exóticos. Ela não quer abandono, marcas, vincos, rugas. Compre um ferro de passar a vapor.  Ela está certa.

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