30 outubro 2018

BEM


Maria Amélia Mano

Diz a lenda que quando nasceu, Benjamim não chorou, deu imensa gargalhada que surpreendeu parteira. Cresceu com olhar deslumbrado e mudava de nome a cada dia: Beijamim, Benjasmim, Benjardim e por aí inventava e se reinventava. Para todos era, simplesmente, Bem. Na escola, Bem dizia que as letras embaralhavam e se misturavam sozinhas no quadro da sala de aula, formando poemas e até notas de canções que cantava e dançava no recreio. Dizia muito, dizia mais, via muito, via mais. Intensidades.

Para o menino, a calçada de casa tinha colorido de carambolas, nectarinas, laranja-lima, jabuticaba e romã, conforme a estação. Na luz do poste da esquina, um mundo redondo de pequenas estrelas que voavam, zuniam. Da janela do quarto, enxergava vulcão lilás mágico que fabricava caminhos de lava que coloriam a terra. Dessa terra, tia Dina de olhos brilhantes fazia cerâmica, imensas estátuas de animais imaginários saídos de um torno que mais parecia uma mandala deitada. A mãe, também artesã, costurava fantasias coloridas com as mãos cintilantes e fios de luz retirados de tear suspenso no ar: te-ar.

E o mundo era assim para Benjamim, Beijamim, Benjasmim, Benjardim até que enfim, adoeceu de intensidades. Bem tinha um mal. E deram remédios de curar loucuras. E se curou. A calçada, afinal, era cinza e sem cheiro ou sabor, em qualquer estação. Eram abelhas as estrelas que voavam em um imenso enxame no alto do poste da esquina. Da janela, via montanha com sinais de gravetos queimados, outros secos, terra de carvão. Tia Dina de olhos cansados fazia potes, todos iguais, em série. E a mãe se debruçava em máquina ruidosa com as mãos cheias de cicatrizes, fazia pequenos consertos de uniformes militares.

Sem conseguir ver poesia e música na escola, Bem não dançava no recreio e a dor do mundo exigiu a desobediência: escondeu os remédios, cuspiu a sanidade como quem cospe um fardo. No sétimo dia, as cores voltaram e voltaram mais intensas do que eram. Fugiu pela janela-portal montado em cavalo marinho de vento sobrevoando as fumaças multicoloridas cheias de purpurina. Ameaçado de cárcere de realidade, invadiu o imenso mundo feito no poste, sentiu as primeiras estrelas voadoras queimarem a pele e o fio dourado do te-ar prender garganta. E o menino virou favo, geleia real, colmeia, cometa e constelação.

            Benjamim, Beijamim, Benjasmim, Benjardim voltou a cantar. Era canto de beleza, Bem, doçura, loucura, mel que nos salva de toda essa razão sem cor, sabor, brilho, poesia e canção.

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