Maria Amélia Mano
Depois de ser demitida da
biblioteca e de perder o amor da vida, Wanda se trancou em si e em casa. Habilidosa
na restauração de livros, vivia de pequenas encomendas. Na mesa de trabalho, os
livros antigos, os materiais de restauro e o aquário onde Dustin, o Betta
dourado, nadava com a elegância dos peixes ornamentais. Na mesa também, uma
garrafa de tequila que Wanda costumava consumir com sal e limão, ouvindo Hotel
Califórnia sempre que terminava trabalho mais exigente, com mais retorno
financeiro.
Nas horas vagas, via filmes,
sempre os americanos. Dustin era Dustin por Dustin Hoffman. Por um tempo,
Dustin teve Meg, por causa da Meg Ryan. Um dia, o aquário amanheceu com somente
um peixe e Wanda supôs que Dustin havia devorado Meg. Eram absolutamente
iguais, mas ela sabia que Meg era vítima, afinal, são os homens que destroem as
mulheres. Apesar de triste, perdoou Dustin que era sua única companhia e
reproduziu, no aquário, um mar doce lindo para que o peixe não se sentisse tão
solitário.
Uma tarde, Wanda notou o
aquário vazio. Revirou as pedras e as plantas: nada. Olhou em volta das bíblias
e dicionários, velhos livros de família prontos para reparos: nada. Buscou até
na garrafa de tequila: nada. Notou a janelinha aberta da antiga porta de
entrada. Não, peixes não saem voando assim. Frustrada com o sumiço do único
amigo, Wanda se dedicou mais ao trabalho. Espalhou cartões de propaganda entre
os vizinhos do condomínio e logo, logo, apareceu a encomenda do restauro dos
sonhos: uma Barsa inteira.
A enciclopédia era de
Juvenal, vizinho do lado que disse ser lembrança de infância. Pela intensidade
do trabalho, começaram a conversar. Ele também era solitário, também gostava de
cinema, mas cinema francês. Um café aqui, um chá acolá e o estrago estava
feito: expectativa. Wanda mudou o corte de cabelo, tirou os brincos pendentes
antigos do fundo do porta-joias, leu poesia, dormiu com travesseiro de ervas,
tomou vinho rosé e se permitiu dançar sozinha na sala: uma salsa colombiana,
uma bachata dominicana.
Com a desculpa da lombada do
volume dois da Barsa, Wanda vai até o apartamento do vizinho. Antes de tocar a
campainha, uma gata malhada salta da janelinha para o corredor. Juvenal abre a
porta e chama por Amelie, companheira felina de solidão. Surpresos, todos se encontram
e se olham. Juvenal tem olhar de timidez, queria ser mais charmoso como Vincent
Cassel em Gauguin. Wanda tem olhar de desejo, queria ser mais sedutora como Meg
Ryan em Cidade dos Anjos.
E Amelie, bem, Amelie tem
olhar de culpa, queria ser vegetariana, como Babe, o porquinho atrapalhado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?