22 janeiro 2019

VOO COM VAN GOGH


Maria Amélia Mano

Já no avião.

Estou voando de volta, como ave que migra, como somos. Nossas terras mágicas e distantes. O mundo lá embaixo é pequenino como nós. Quanto mais alto, menor, mais distantes e mais reais somos. A aeromoça me olha com estudada compaixão profissional, está acostumada com olhos úmidos. Quase peço um abraço apertado e pergunto: você viu passar a fagulha que acendia fogueiras e aquecia invernos? Aquela que esperava remotos verões em algum polo da terra? Será que se foi como descuido, como quem deixa cair papéis dos bolsos, conta de luz, boleto de condomínio? Tudo assim, tão banal quanto sobreviver?

Procuro e não acho. A lágrima está aqui, nas minhas mãos abertas. Está ela lá e cá perto. Me persegue, vem comigo, voa comigo. Escorre, evapora, decanta, se liquefaz e cai de novo. Somente essa água toda, essa ilha no escuro, no meio do mar, onde a lua cheia esvazia e avermelha faz sentido e conta histórias de constelações, ciclos, signos, sinas. As nossas, reencontradas, tantas vezes, entre rio e mar, fronteira e centro do mundo, ser-tão, uni-verso e cantiga de caminhos. Olho a pequena janela de nuvens. A aeromoça repete a pergunta: biscoito salgado ou doce? Doce. Sempre doce, para o sentimento aterrado e aterrissado.

Pousei.

No saguão, avisam que as bagagens especiais estarão disponíveis no balcão dos frágeis, retirar ao lado da esteira oito. Gostei do balcão dos frágeis. Quase corri pra lá. O atendente deveria ser sensível pra essas fragilidades indisponíveis nos carimbos das companhias aéreas. Achados e perdidos, para onde eu iria? Sim, não perco a oportunidade de rir de mim mesma. Mas ainda não achei os boletos e as contas, as fagulhas. Descuidos imperdoáveis em uma vida que precisa de atenção plena. A mesma do goleiro que defende o pênalti, do arqueiro antes de lançar a flecha, do malabarista do salto mortal.

Não se preocupem. Não abracei a aeromoça, não conversei com o atendente do balcão dos frágeis, tampouco no balcão dos perdidos, mas pagarei o atraso das contas. Vicente, o simpático motorista do táxi se dizia anjo e falava de espíritos e missões. Lembrei do Nicolas Cage que voava por Los Angeles e desistia da eternidade pelo amor. Depois lembrei de outro Vicente, Van Gogh, que nunca voou, desistiu do amor, da vida e virou eterno. Vincent dizia que exprimia a esperança, pintando um punhado de estrelas. Talvez eu comece a pintar aquarelas. Essa cor que precisa da água de mil lágrimas para existir.

Em casa.



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