Ernande Valentin do Prado
Em 1990,
logo depois de sair do exército, trabalhei de balconista em uma grande padaria
na Região Metropolitana de São Paulo.
Na
época, não lembro o motivo, faltava leite no Brasil, talvez por conta de uma
seca ou por causa de uma das políticas descabidas do Collor, não sei dizer. O
que importa é que o governo importou leite em pó e este era reidratado e
vendido em pacotinhos plásticos. A caixinha longa vida ainda não era o padrão.
Então
tinha esse leite reidratado, mais fraco e tinha o leite tipo A. O gerente da
padaria, um senhor muito elegante e de fala agradável, orientava os
balconistas, três vezes ao dia, a empurrar o leite reidratado para “aquelas
pessoas com “cara de pobres” e deixar o leite tipo A para as outras pessoas.
E os
balconistas respeitavam essa orientação?
E se não
respeitassem, o que aconteceria, o gerente iria pessoalmente entregar o leite
ruim para os mais pobres? Iria demitir quem entregasse leite bom para os
pobres?
Ninguém
nunca quis saber quais as consequências, o chefe mandou, era executado sem
questionamentos.
Mas eu
nunca fui bom em respeitar ordens, o Sargento Borba bem sabe disso. Pelo meu
julgamento, era justamente quem parecia pobre que precisava do melhor leite e
era isso que eu fazia. O gerente nunca reclamou comigo, por eu não respeitar
sua orientação, talvez porque eu nunca chegava atrasado, pegava pesado no
trabalho e, principalmente, porque ele gostava do café bem forte que eu fazia.
Por
outro lado, os colegas de balcão reclamavam o tempo todo. O que me leva a
perguntar: será que agradar quem tem o poder de mandar é mais importante do que
ter ética e vergonha na cara?
Concordando
com Paulo Freire, acredito que na vida é preciso escolher um lado e o meu
sempre esteve muito claro desde que me entendo no mundo e com o mundo.
Talvez
depois de uma introdução tão longa, para os padrão de textos de hoje em dia,
você esteja se perguntando: tá certo, mas o que isso tem a ver com a saúde?
Estamos
vivendo um tempo estranho. Vários avanços dos últimos anos, como o respeito às
diversidades humana, de gêneros, etnias, culturas, posicionamentos políticos e
religiosos, estão sendo questionados e tenta-se padronizar as pessoas em
caixinhas fáceis de entender. Querem voltar ao tempo em que meninas “vestem
rosa e meninos vestem azul”.
Daí que
normas éticas, respeitosas, como por exemplo, a lei do nome social, a
prioridade de atendimento para crianças, gestantes e idosos, entre outras,
podem perder o sentido e até serem revogadas.
Se
amanhã uma ordem nova for dada, por exemplo, de que mulheres abortando não
devem ser atendidas, ou que “homens de bens têm preferência” no atendimento,
quando comparados com um “homossexual”, uma mulher ou um morador de rua, você
vai aceitar?
Absurdos
esses exemplos? Será? Você lembra que o Prefeito do Rio de Janeiro, bispo da
Igreja Universal, foi flagrado orientando os evangélicos a procurar sua
assessora para agendar cirurgias cortando a fila?
Se mesmo
assim acha que meus exemplos são absurdos, vamos pensar uma coisa mais leve:
Quando a
Secretaria de Saúde dá uma ordem para que a Equipe não atender moradores de
outros municípios ou de outros bairros, você respeita?
Respeitar
ou não normas que parecem éticas ou não, cabe ao profissional na ponta do
serviço, não ao gestor. Quem atende ou nega atendimento, seja qual for o
motivo, seja qual for e de quem for a ordem, é o trabalhador na ponta, atrás do
balcão, na sala de curativo, no consultório, sempre ele. Assim como quem luta a
guerra e executa as estratégias são os soldados, quase nunca os generais.
Por isso
insisto: Você vai ser ético, vai ter vergonha na cara, boa vontade com o ser
humano que jurou cuidar, independentemente da cor da pele, da cor ideológica,
das paixões transcendentais ou vai obedecer ao capitão, quer dizer, ao general?
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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