19 fevereiro 2019

RAY CONIFF VESTE SAPATOS DE ALADIM


Maria Amélia Mano

Quizás, quizás, quizás. Taxista prefere Ray Coniff e eu, Andrea Bocelli. Divido meu dia em três suaves pres-ta-ções, manhã, tarde e noite. Manhã começa em carro vermelho com sapatinho de Aladim pendurado no retrovisor. Qualquer semelhança com tapete mágico é erro e não há gênio em lâmpada. Se houvesse, pediria pelo fim das ruas desidratadas e engarrafadas, das fumaças negras, das pessoas que marcam lugares nos auditórios bem na frente, das goteiras de estimação da casa da minha mãe, da carta de convocação para a reunião do condomínio, da cerveja morna, da mancha de gordura na página da lição do dia do caderno escolar. Coisa pouca é substância essa que bebo devagar, feito chá quente, gengibre, cidreira, mel e leite para esse cotidiano de tosse e engasgo. Smoke gets in your eyes, prefiro Nat King Cole e o taxista faz careta. Velhinha no meio fio acocorada tirando mato e aparecendo cofrinho. Carros passam buzinando, rapazes fazem piada e ela nem bola! Envolvida com seus matinhos, seus caminhos. Os terrários, microjardins construídos com pinças deviam ter uma velhinha assim. As raízes expostas das árvores do parque trançadas como pernas de amantes deviam ter uma velhinha assim. Toda família de bem devia ter uma velhinha assim, com destino de limpar ruas de ervas daninhas e mostrar metade da bunda como metade de palavra que fica depois de carta rasgada: mistérios. Porta estreita de esquina onde se lê: faz-se unhas, corte, tingimento, cabelo afro, reiki, massagem, drenagem linfática, tarô, mapa astral, xerox, frete e ponto de troca de figurinha do álbum da copa. Prá quê gênio da lâmpada se toda vida pode ser resolvida nessa esquina rosa pink de dois por dois metros quadrados? Se tiver oficina de fotografia da lua, se vender livro do Leminski, pão na chapa e bastão de trilha, convido a velhinha do cofrinho pra virar sócia do lugar. Não vi o nome do estabelecimento. É preciso um, bem especial. Quando vi boate na Romênia que se chama Guantànamo, Odara é um alfajor e Medieval é um motel, perdi referência de nome decente. New York New York, aí já tanto faz! Ray Coniff ou Sinatra. Taxista resmunga. Desabafo em silêncio: qualquer coisa menos Ray Coniff nas primeiras horas do dia. Você já confunde direita e esquerda, faz motorista dobrar na rua errada, atrasada porque retornou mil vezes em casa por suposto ferro ligado, boca de fogão acesa. A vida devia ser mais fácil. Economizo xampu com vidro de ponta-cabeça, pago Office, respondo e-mail eletrônico-institucional agradecendo a gentileza. https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gifMas gosto de carboidratos, paredes descascadas, pó de estrada e limão em tudo, trilha de filme, carimbó e ganzá, organizar vida em cafeteria, mais carboidratos, o sexto chiclete do pague-5-leve-6. Gosto da lava de vulcão que explode e corre para o mar, onde esfria e vira pedra, rocha, magma, que é palavra bonita como cardume e candeeiro. Gosto de pensar que costa é o mesmo que continente e penso teu corpo um pouco assim, meio praia, onde brinco e descanso. Besame mucho. Mil vezes Omara Portuondo. E o taxista do sapatinho de Aladim vai à loucura.

Texto parte da coletânea Caio em Mim em homenagem a Caio Fernando Abreu – Oficina Santa Sede - 2018

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