Maria Amélia Mano
Quizás,
quizás, quizás. Taxista prefere Ray Coniff e eu, Andrea
Bocelli. Divido
meu dia em três suaves pres-ta-ções, manhã, tarde e noite. Manhã começa em
carro vermelho com sapatinho de Aladim pendurado no retrovisor. Qualquer
semelhança com tapete mágico é erro e não há gênio em lâmpada. Se houvesse,
pediria pelo fim das ruas desidratadas e engarrafadas, das fumaças negras, das
pessoas que marcam lugares nos auditórios bem na frente, das goteiras de
estimação da casa da minha mãe, da carta de convocação para a reunião do
condomínio, da cerveja morna, da
mancha de gordura na página da lição do dia do caderno escolar. Coisa pouca é
substância essa que bebo devagar, feito chá quente, gengibre, cidreira, mel e
leite para esse cotidiano de tosse e engasgo. Smoke gets in your eyes, prefiro Nat King Cole e o taxista faz careta. Velhinha no meio fio acocorada tirando mato e aparecendo cofrinho. Carros
passam buzinando, rapazes fazem piada e ela nem bola! Envolvida com seus
matinhos, seus caminhos. Os terrários, microjardins construídos com pinças deviam
ter uma velhinha assim. As raízes expostas das árvores do parque trançadas
como pernas de amantes deviam ter uma velhinha assim. Toda família de bem devia
ter uma velhinha assim, com destino de limpar ruas de ervas daninhas e mostrar
metade da bunda como metade de palavra que fica depois de carta rasgada: mistérios.
Porta estreita de esquina onde se lê: faz-se unhas, corte, tingimento, cabelo
afro, reiki, massagem, drenagem linfática, tarô, mapa astral, xerox, frete e
ponto de troca de figurinha do álbum da copa. Prá quê gênio da lâmpada se toda
vida pode ser resolvida nessa esquina rosa pink de dois por dois metros
quadrados? Se tiver oficina de fotografia da lua, se vender livro do Leminski,
pão na chapa e bastão de trilha, convido a velhinha do cofrinho pra virar sócia
do lugar. Não vi o nome do estabelecimento. É preciso um, bem especial. Quando
vi boate na Romênia que se chama Guantànamo, Odara é um alfajor e Medieval é um
motel, perdi
referência de nome decente. New York New
York, aí já tanto faz! Ray Coniff ou Sinatra. Taxista resmunga. Desabafo em silêncio: qualquer coisa
menos Ray Coniff nas primeiras horas do dia. Você já confunde direita e
esquerda, faz motorista dobrar na rua errada, atrasada porque retornou mil
vezes em casa por suposto ferro ligado, boca de fogão acesa. A vida devia ser mais
fácil. Economizo xampu com vidro de ponta-cabeça, pago Office, respondo e-mail
eletrônico-institucional agradecendo a gentileza.
Mas
gosto de carboidratos, paredes descascadas, pó de estrada e limão em tudo, trilha de
filme, carimbó
e ganzá, organizar vida em cafeteria, mais carboidratos, o sexto
chiclete do pague-5-leve-6. Gosto da lava de vulcão que explode e corre para o mar, onde esfria
e vira pedra, rocha, magma, que é palavra bonita como cardume e candeeiro. Gosto de
pensar que costa é o mesmo que continente e penso teu corpo um pouco assim,
meio praia, onde brinco e descanso. Besame
mucho. Mil vezes Omara Portuondo.
E o taxista do sapatinho de Aladim vai à loucura.

Texto parte da coletânea Caio em Mim em homenagem a
Caio Fernando Abreu – Oficina Santa Sede - 2018
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