20 agosto 2019

DANÇO EU DANÇA VOCÊ


Maria Amélia Mano

Acredite, não tem hora. Tal qual morte, solidão chega sempre, um dia. Minha última chegou feito emboscada de mim, tocaia de mim. Machucada de mim, desabei, desandei em descaminhos. Tive que reinventar pra seguir e criei Museu da Solidão. Da minha. De mim.

Fiz café sem leite, sem pão e sem plano. Me vesti de silêncio e espanto.  Coloquei véu rubro de esconder ferrugem dos olhos. Calcei corais. Saí sem rumo, vaguei, zigue-zagueei, bambeei bêbada de mim. Erma, tateei minha miséria mais miúda, repetindo velhos itinerários de cigania. Me vi: esses cabelos, desmantelos, atropelos de mim! Decidi: espelho vai pra Museu da Solidão.

Almocei comida ruim em restaurante ruim. Na tevê, canal sem som passava ondas gigantes do Taiti. Uma baladinha antiga do Phil Collins vinha de outro aparelho. Um jarro minúsculo com um cacto falso enfeitava a mesa. Sabe, nada combinava ou fazia sentido. Talvez a chuva fina. E resgatei jarrinho com cacto sem vida daquele lugar. Ficariam dignos no Museu da Solidão.

Na calçada molhada do restaurante ruim, homem dormia com cão que tinha as mesmas cores do cobertor em que ambos se enrolavam: amarelo e cinza. Sintonia inútil, harmonia triste. Combinações de cores assim, coisas assim, não deveriam existir. Fotografei encontro de cobertor com pelo de cachorro. Sim, fotos também caberiam no Museu da Solidão.

Na vitrine da loja, casaco de tricô lilás bordado com flores vermelhas pequenas. Delicadas. Placa de papel escrita com letra tremida: feito à mão. Como alguém colocou aquele casaco de vó pra vender? Pense quanto tempo de tecer e bordar pra alguém, em vão. Entrei e lá estava ele desengonçado em cabide. Feito eu. Feito nós. Humanidade. Perfeito pra Museu da Solidão.

Voltei pra casa. Sesteada boa ouvindo Paulinho da Viola. Solidão, lava que cobre tudo, palavra cavada no coração. É estranho, mas imaginei coração humano coberto de lava escarlate, tipo calda de amora. No meio, uma janela em miniatura, uma menininha descansando a face nas mãos como namoradeira de cerâmica das Minas Gerais. Viajei no sonho.

A menina minúscula vestiu casaco lilás de vó. Alimentou homem e seu cão amarelo e cinza. No parapeito da janelinha, mini-jarro com cacto e o espelho distante dava pra ela se ver de longe, descabelada e linda. Os visitantes escutaram Paulinho e propus destinos pra Camélia, Joana e Maria. Dançaram. Museu da Solidão virou festa, inspiração. Recriação. Minha. De mim.

Acredite. Assim reinvento minha solidão. Cada vez de um jeito. Dividindo, dando sentido, curando excessos, abandonos de mim. Essa última, nascida de sonho em sesta, foi menina namoradeira na janela, pequenina, desgrenhada que dançou esperançosa de mim. Em plena tarde.

Texto para a Oficina Santa Sede - Circuito
Ilustração - Mônica Barengo

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