Maria Amélia Mano
Acredite,
não tem hora. Tal qual morte, solidão chega sempre, um dia. Minha última chegou
feito emboscada de mim, tocaia de mim. Machucada de mim, desabei, desandei em
descaminhos. Tive que reinventar pra seguir e criei Museu da Solidão. Da minha.
De mim.
Fiz
café sem leite, sem pão e sem plano. Me vesti de silêncio e espanto. Coloquei véu rubro de esconder ferrugem dos
olhos. Calcei corais. Saí sem rumo, vaguei, zigue-zagueei, bambeei bêbada de
mim. Erma, tateei minha miséria mais miúda, repetindo velhos itinerários de
cigania. Me vi: esses cabelos, desmantelos, atropelos de mim! Decidi: espelho
vai pra Museu da Solidão.
Almocei
comida ruim em restaurante ruim. Na tevê, canal sem som passava ondas gigantes do
Taiti. Uma baladinha antiga do Phil Collins vinha de outro aparelho. Um jarro
minúsculo com um cacto falso enfeitava a mesa. Sabe, nada combinava ou fazia
sentido. Talvez a chuva fina. E resgatei jarrinho com cacto sem vida daquele
lugar. Ficariam dignos no Museu da Solidão.
Na
calçada molhada do restaurante ruim, homem dormia com cão que tinha as mesmas
cores do cobertor em que ambos se enrolavam: amarelo e cinza. Sintonia inútil,
harmonia triste. Combinações de cores assim, coisas assim, não deveriam existir.
Fotografei encontro de cobertor com pelo de cachorro. Sim, fotos também
caberiam no Museu da Solidão.
Na
vitrine da loja, casaco de tricô lilás bordado com flores vermelhas pequenas. Delicadas.
Placa de papel escrita com letra tremida: feito à mão. Como alguém colocou
aquele casaco de vó pra vender? Pense quanto tempo de tecer e bordar pra
alguém, em vão. Entrei e lá estava ele desengonçado em cabide. Feito eu. Feito
nós. Humanidade. Perfeito pra Museu da Solidão.
Voltei
pra casa. Sesteada boa ouvindo Paulinho da Viola. Solidão, lava que cobre tudo,
palavra cavada no coração. É estranho, mas imaginei coração humano coberto de
lava escarlate, tipo calda de amora. No meio, uma janela em miniatura, uma menininha
descansando a face nas mãos como namoradeira de cerâmica das Minas Gerais. Viajei
no sonho.
A
menina minúscula vestiu casaco lilás de vó. Alimentou homem e seu cão amarelo e
cinza. No parapeito da janelinha, mini-jarro com cacto e o espelho distante dava
pra ela se ver de longe, descabelada e linda. Os visitantes escutaram Paulinho
e propus destinos pra Camélia, Joana e Maria. Dançaram. Museu da Solidão virou
festa, inspiração. Recriação. Minha. De mim.
Acredite.
Assim reinvento minha solidão. Cada vez de um jeito. Dividindo, dando sentido,
curando excessos, abandonos de mim. Essa última, nascida de sonho em sesta, foi
menina namoradeira na janela, pequenina, desgrenhada que dançou esperançosa de mim.
Em plena tarde.
Texto para a Oficina Santa Sede - Circuito
Ilustração - Mônica Barengo
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