01 outubro 2019

A VIDA (EN)COBERTA DOS INSETOS


Maria Amélia Mano


Como patas de gafanhotos, asas de grilos e esperanças, pés se roçam debaixo dos lençóis.

Se encontram, subterrâneos cupins, se surpreendem no desejo e no cansaço: início e fim de dia. Ritual, dança circular sagrada de manhãs e noites. Identificam bolhas dos sapatos apertados ou dos intensos caminhares e bailares de ponta-de-pé, pequenos pulos de pulgas. Reconhecem rachaduras, securas, grossuras, velhos calos quietos e conformados. Bolores. E os novos, cicatrizes de tropeços em jornadas que se iniciam, estreias, chutes. Corte e carne viva. Flor da pele, pele exposta, pelo e flor de pêssego onde passeia a cochonilha de lá pra cá, de cá pra lá. Mote pra falar de sonhos.

  Unha mal cortada ou comprida tal tamanduá que come formiga é quase ferrão de vespa. Arranha, assusta e dói no roçar descuidado. Mas arrepia e faz cócegas na intenção de provocar. Joanete é necessidade de nudez, pés descalços. Meia é recato indesejado. Recolhimento, esconderijo, barreira. Um não querer. Pecado nessa vida tão curta de mosca. Pois é no toque do mindinho na madrugada nua que se resolve a mágoa da tarde. Ali é onde se reconcilia, onde se explica e se recomeça. Onde se perdoa. Onde se seduz. Onde se queima e arde.

Enquanto pés se lagartearem em preguiças e dengos, vão seguir em crisálidas e borboletas em festa de joaninhas coloridas, metamorfoses. Enquanto se percorrerem, se acariciarem das pontas das falanges, do dedão, passando pelas curvas, plantas, calcanhares até os tornozelos como voo de libélula em beira de rio, vão inspirar canto de cigarras, seiva, pólen, mel de abelhas. Esse doce saboreado por lábios que pousam lento, mariposas. Mãos mimetizadas em folhas de outono que passeiam, descobrindo casulos e universos tecidos por bicho da seda.

Enquanto pés se tocarem debaixo dos lençóis, o amor e todos nós estaremos salvos. Sob a luz de vaga-lumes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog