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Injuria, 1994. |
Ernande Valentin do Prado
Em 1994, em um piquenique com amigos do Partido dos
Trabalhadores, fui espancado por um indivíduo que trabalhava de “bate-pau” para
o prefeito, lá em Fazenda Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba.
— Sabe o que é um bate-pau?
Bate-pau, era como se chamava o capanga, o jagunço,
o segurança de alguma “otoridade, naquela época e lugar.”
O bate-pau era, além de bate-pau, professor de
artes marciais e tinha o apelido de Pelé. Para justificar o espancamento disse
que fora injuriado racialmente. Na verdade quem disse foi o patrão dele, o
prefeito.
A justiça arquivou o caso que fora aberto para
investigar a conduta do bate-pau e do mandante, o Prefeito da cidade. Ainda
tenho o recorte de jornal (que era de papel na época) e a mágoa de não ter
conseguido provar que a defesa só alegou racismo para tentar fugir da
responsabilidade legal do bate-pau e do prefeito pelo espaçamento por
motivos políticos. O Prefeito se achava dono da parque onde estávamos.
Claro que quem me conhecia e, principalmente, as
dezenas de pessoas que presenciaram o espancamento, sabiam qual era a
verdade.
Algum tempo depois, esse bate-pau e outros foram
denunciados por torturar estudantes e até o delegado e os membros da polícia
civil do município, todos indicados pelo prefeito e patrão do bate-pau, foram
presos por roubar carros, traficar drogas e praticar tortura.
Mesmo a verdade sendo evidente, essa injúria doeu e
ainda dói em minha alma e tenho certeza que ainda dói em todos os companheiro
que estavam ao meu lado naqueles dias e passaram por tudo junto comigo.
Atacar parece ser uma forma muito eficiente de se
defender contra o indefensável, principalmente nestes tempos de fake news e
verdades inventadas. Expediente que acreditamos e esperamos ser praticado
apenas pela extrema direita, que é naturalmente mentirosa, inescrupulosa e
desapegada aos fatos reais.
No entanto, não só a direita é fascista ou se
mostra fascista em diferentes contextos, tem muito fascista de esquerda, tem
muito fascista dentro de universidades, tendo e dando aulas. Quer dizer,
fascista é fascista, não são nem de direita e nem de esquerda, são fascistas,
não importa nem a profissão. Ponto.
— E não é que fui novamente acusado de ser racista?
Desta vez em um evento da Abrasco e sem ser
espancado (pelo menos isso). Detesto ser espancado e novamente usar gesso no
nariz não está nos meus planos. Outro detalhe, desta vez não foi um bate-pau
que me acusou, foi um doutor e nem foi em uma situação que precisasse partir
para ataque tão vil como forma de se defender. Foi uma bombeira completa que
certamente, se não tivesse subido as cabeças (minha e dele), não aconteceria.
O acusador simplesmente alegou racismo, sem nenhum
motivo, sem nenhuma provocação ou ato que pudesse ser interpretado desta forma.
Ele foi simplesmente impedido de entrar em um ambiente em que não cabia mais
ninguém, segundo os critérios coletivos decididos pela comissão organizadora
local. Aliás, não apenas ele fora impedido de entrar.
Foram impedidos de entrar na mesma sala ao menos
oito pessoas, de cores, origens e supostos graus de “poderes diferentes”. A
questão não foi a cor da pele e sim o fato de que dois corpos não ocupam
o mesmo espaço, como disse uma das testemunhas do desentendimento. O que me dá
medo é:
— e se não houvesse testemunha, será que
acreditariam em um branco sendo acusado de racismo por um negro?
Tenho plena convicção que a norma corrente deste
Brasil racista é justamente não acreditar no negro. Mas essa não é a realidade
do meio em que nos encontrávamos e, ao que soube depois, houve uma acusação e
até uma reunião para discutir o assunto, que pelo visto não foi levado adiante,
de novo e, neste caso, de novo, não pude me defender e mostrar que o injuriado,
neste caso, era eu.
Em outra situação, no mesmo evento, uma professora
de origem indígena, disse informalmente, que eu era Branco. “Agressão
gratuita”, em minha opinião, uma vez que apenas pedi que fosse cumprida uma
pactuação coletiva. Mas sobre isso não dá para dizer que é mentira, uma vez que
realmente sou branco, me movimento dentro de um espaço e de um tempo descrito
por brancos, embora aceite que nem todos sejam limitados pelo espaço tempo,
como eu sou.
A outra acusação sofrida por mim durante o
Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Abrasco, realizada em
João Pessoa em 2019, também não é mentira ou melhor, não foi, uma vez que não
me vejo assim o tempo todo. Acho até que deveria ser mais, motivos para isso
não me faltam.
— Debochado.
E realmente estava sendo debochado, mas escute a
“estória”, talvez também você reagisse com deboche, se estivesse em meu lugar.
Para uma determinada atividade, foi pactuado
coletivamente pela coordenação local, que ao ser ocupadas todas as cadeiras,
ninguém mais deveria entrar, isso porque a ideia era que os participantes
pudessem dialogar, discutir, aprofundar conceitos antes apenas ouvidos. O que
não é tão simples em uma sala lotada.
A maioria das pessoas que chegaram após o
esgotamento das vagas, entenderam perfeitamente os motivos de não poder entrar.
No entanto, uma pessoa resolveu não entender e tentar dar um carteiraço.
— Você sabe o que é um carteiraço?
Segundo o dicionário digital, Aulete, carteiraço
é:
(car.tei.ra.ço) sm.
1. Pop. Ação ou
prática de exibir carteira funcional de autoridade com a intenção de
intimidar ou obter regalias; CARTEIRADA: "O carteiraço é uma
das mais deprimentes heranças do passado de subserviência..." (, Diário
de S. Paulo, 24.01.2006.))
[F.: carteira + -aço.]
A doutoranda, ao que parece, deveria estar naquela
sala prestigiando seu orientador, um famoso professor vindo do exterior. E, por
ter chegando já no final da roda, não conseguiu entrar, já que “dois corpos não
ocupam a mesma cadeira”.
Depois de negar-se a entender os motivos de não
poder entrar, mesmo recebendo ao menos três explicações, e depois de parar de
pedir que fosse dado um “jeitinho” só para ela, a moça mudou de tática e
resolver impor-se pela “otoridade” de ser orientanda do Dr. fulano.
Foi aí que fiquei debochado e não posso negar que
realmente debochei da futura doutora em Ciências Sociais.
Você pode perguntar e algumas pessoas perguntaram
mesmo:
— não seria mais fácil deixar ela entrar, afinal de
contas é assim mesmo que se faz sempre?
Realmente seria. No entanto, há que considerar três posicionamentos políticos e psicológicos, que acredito ser extremamente
importantes:
1 a decisão de que só deveria entrar na sala o
mesmo número de pessoas que pudessem ocupar as cadeiras disponíveis, não foi
minha, foi uma pactuação coletiva. Portanto só me cabia cumprir essa delegação,
mesmo que eu não concordasse com ela (e não era o caso). Cumprir o que foi
delegado pelo coletivo é o que espero dos políticos, então fazer diferente para
evitar confusão, para mim, seria ser antidemocrático, desrespeitoso e,
sobretudo, covarde.
2 respeito à metodologia. Roda de conversa não é
por pessoas em círculo, como comumente se pratica. Pode até ser, dependendo da
intencionalidade, mas não deveria. E, no caso específico, ter mais pessoas do
que o pactuado, quebraria a metodologia e, sobretudo, inviabilizaria a
intencionalidade, que era promover o diálogo entre os participantes e os
convidados.
— Vou repetir para que não haja dúvidas:
a intencionalidade dessa roda era promover o
diálogo entre os participantes, não era uma mesa redonda, não era uma palestra
onde se senta e assiste o convidado falar e, sobrando tempo, o congressista
pode até fazer perguntas. Isso já tinha acontecido um dia antes (e não tinha
sobrado tempo para ninguém falar nada, a não ser os convidados). Naquela roda a
intencionalidade era dialogar, falar, oferecer o ponto de vista do congressista
aos convidados. Daí que a sala não deveria estar lotada, não deveria ter
pessoas se espalhando pelo chão ou em pé. E não teve.
3 ética. Se impedi várias pessoas de entrar, como
deixaria outra ou outras, apenas porque não quiseram entender ou porque
tentaram se impor?
E é neste ponto que uma mesma atitude tem duplo
significado: para mim eu estava sendo ético, justo, imparcial ao não permitir a
entrada de mais ninguém. Para quem desejava entrar, eu estava sendo
autoritário, debochado, autoritário.
— Acredito, do fundo do meu coração, que eu fora
convidado para organizar esse momento porque tinha condições de garantir o que
fora pensado coletivamente pela comissão local.
E foi o que fiz, mesmo sabendo de antemão que
corria o risco de ser chamado de autoritário ao exercer a autoridade que me
fora delegada pelo coletivo, que é de onde deve surgir toda e qualquer
autoridade legítima.
O que eu não previra fora ser chamado de Branco,
debochado e racista.
— De ser branco não tenho como me defender, de ser
debochado, também não, mas racista, até quem não gosta de meu jeitão, sabe que
não sou.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Meu caro Ernande, suas argumentações são uma bela construção sobre o fato que acabou gerando uma certa confusão e/ou mesmo distorção sobre sua conduta no episódio, como se você não tivesse seguido uma pactuação coletiva. Parabéns!
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