08 outubro 2019

O ÚLTIMO QUARTO À ESQUERDA


Maria Amélia Mano

Rua que é curva que dá volta. Praça com árvores calmas. Casa silenciosa de esquina. Dois degraus largos e rampa ao lado. Campainha baixa. Tempo suspenso. Meu sorriso suspenso.

A porta de vidro deixa passar vultos lentos que desejam sair. Talvez. Foi-se o momento das aventuras. Ao se abrir, vem corredor longo como a vida de todos que ali moram. Corrimões me acompanham. Em passo demorado, à direita, a primeira porta: grande sala onde moradores se reúnem em torno da televisão. À esquerda, quarto com camas vazias. Senhorinhas devem estar na sala. Talvez.

Em seguida, à direita, copa com mesa retangular. Velhinhos em volta, alimentados colher a colher, devagar. Algo mole. Talvez uma papa. Talvez uma sopa. Talvez gelatina. Alcanço a porta do imenso banheiro com louça colorida e antigos azulejos floridos da década de 1960. Talvez margaridas. Talvez girassóis. Não lembro. Mas é o espaço mais alegre da casa. Tem cheiro de algum desinfetante conhecido. Talvez lavanda. Talvez pinho.

Na frente do banheiro, quarto fechado. Mais adiante, à esquerda, outro quarto com camas ocupadas. Cabeças branquinhas deitadas, dormindo. Cuidadores sonolentos transitam, cumprimentam. Cansados. Talvez. À direita, seguindo, porta para pátio onde muitos estão - pegando um solzinho moroso. Mais adiante, sala grande onde mais velhinhos se juntam, conversam, riem, choram. Talvez. Nem sempre entendo o que dizem.

Na frente dessa sala grande, tua porta. Entro. Sinto que desde que meu dedo tocou a campainha até percorrer esse caminho-corredor, o tempo parou. Parou mais quando desconfiei do teu olhar sem me reconhecer. Talvez que mudou rotação e eixo da terra, estação. Astros explodiram, lua desandou, maré subiu. Em mim, inundação. Escorreu na face. Alívio quando, enfim, me reencontrou: filha, saudade!

Corredor-era. Porta-vida de vidro. Dois degraus largos. Casa calada de esquina. Praça com árvores tranquilas. Rua que é arco que dá volta. Eu que volto. Tempo suspenso. Nossos sorrisos sempre redescobertos.


Texto: Oficina Santa Sede - Circuito
Ilustração: Rie Nakajima

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