05 outubro 2019

QUARTO DO DESPEJO

Maria Emília Bottini



Carolina Maria de Jesus, mulher, negra, semi-alfabetizada, mineira de Sacramento, nasceu em 1914 e faleceu em 13 de fevereiro de 1977, aos 63 anos despediu-se de uma vida atribulada pela consciência do sofrimento do corpo e da alma. Afinal, ter ciência das coisas do mundo é doloroso e sofrível.
Conheci esta brasileira através de uma amiga médica inconformada, uma lutadora das causas da saúde pública. Amélia Mano é uma médica que escreve de forma a nos fazer rir, porque é alegre e divertida, talvez chore por dentro. Muito me alegra tê-la conhecido quando trabalhamos juntas em Barão de Cotegipe. Eu, psicóloga, ela médica e uma enfermeira fizemos grupos de hipertensos e diabéticos para mulheres e elas vinham a pé, a cavalo... elas vinham. Gosto das imagens e textos fortes que ela posta em seu facebook que me deixam atenta na medida em que auxiliam a compreender o viver. Ela é apaixonada por viagens, por história e por coisas do sensível.
Meu marido comprou o livro indicado em uma de suas postagens, chama-se Quarto do Despejo: diário de uma favelada, uma leitura nada fácil, mas no meu entendimento necessária. Carolina fez um diário de sua vida de luta pela sobrevivência e de suas crias, dois meninos e uma menina na favela do Canindé em São Paulo.
Os caminhos de Carolina se cruzam com o jornalista Audálio Dantas, que foi à favela Canindé para realizar uma matéria sobre as condições que as pessoas lá viviam, pois se avolumavam entre restos e ali sobreviviam e se reproduziam. Deparou-se com a história pronta e registrada em inúmeros cadernos encardidos em que a favelada transcrevia suas muitas lutas. Esse encontro com os textos de Carolina lhe permitiram ajudar essa grande figura que pelas condições impostas não lhe era permitido voar, eram apenas voos na imaginação e em seus sonhos. O que seria da gente se não houvesse imaginação? Sonhos com dias melhores? E por falar em sonho, de forma recorrente sonhava com casa e comida. Coisas tão básicas, mas quem não tem, sonha com o desejo a lhe perturbar, muitas vezes ficava irritada ao acordar, gostaria de continuar no sonho e não mais acordar. A fantasia doía bem menos. A sua realidade doía o corpo, a mente.
Com ajuda do jornalista em 1958 foi publicado na Folha da Noite, trechos do diário. Em 1959 na revista Cruzeiro. E em 1960 o livro nasceu e deu forma aos muitos registros, com alguns cortes e seleção de trechos mais significativos, respeitando a linguagem e os erros de grafia da autora que estudou tão somente até o segundo ano de escolaridade, mas era devota diariamente da escrita e da leitura.
Dois anos que lhe valeram mais que o letramento pode dar, ela conheceu a professora Lanita Salvina que marcou sua vida, pois dizia que deveria escrever tudo o que surgisse na mente dela. Assim o fez. Registrou tudo o que via e sentia. E o que sentia era de uma profundidade que muitos doutores que conheço não conseguem expressar, talvez lhe falta dor aquela que poetas conhecem tão de perto.
Era apaixonada pela literatura, encontrava livros no lixo, ganhava papel de doação ou mesmo comprava para aplacar a vida que enfrentava como ela mesma refere em entrevista: “quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário”. O que fazia uma mulher tão simples e com tão pouco ter apreço pelas letras e a escrita? Penso que sem elas não teria sobrevivido a um mundo que se mostrou quase que sempre de forma hostil e sem perspectivas neste que foi um cotidiano povoado de mazelas. Usou a escrita para aplacar a dor de viver em meio a restos do mundo e odores féticos.
Diariamente se ocupava de grafar a existência, encontrando sentido para aplacar um pouco do que vivia, o que era mal compreendido pela vizinhança por vezes nada amigável. O diário foi usado para registrar a memória da dor de ser quem era, favelada, negra, paupérrima, solteira em busca sobrevivência constante. O fato de ser solteira rendia-lhe muita ciumeira entre as mulheres, incluindo alguns nomes nada elogiosos. Com pouca frequência há registros sobre os homens e a sexualidade, faltava energia que era destinada a sobrevivência do corpo.
O pai de seus filhos era rico, mas lhe pediu segredo para não aparecer nos diários o que ela respeitou, ele pagava pensão. Se encantou por um cigano, mas percebeu que não era boa gente quando este se interessou por uma adolescente. Carolina era muito perspicaz e sábia, logo percebeu pela forma como ele olhava para a garota, o seu desejo sexual o denunciava e isso ela não lhe agradou, afastando-se dele, não sem sentir a perda. Seu Manoel, homem bom com quem mantinha uma relação de proximidade e de quem recebia alguma ajuda financeira, mas que por alguma razão que não explica decidiu que não queria mais seguir com a relação afirmando que os homens em sua vida só lhe trouxeram filhos e desgostos.
O livro é comovente, pois a realidade não é fantasiada ou colorida, a realidade em que estava inserida é indigna a um ser humano. Em muitos trechos impera a maldade dos que tem sobre os que nada tem. Os registros são dos dias em que a fome tinha cor e era amarela. Ela descreve um dia em que estava sendo consumida pela fome e os objetos no caminho tinham a cor amarela, não imagino o que seja uma fome de amarelar a paisagem.
Escreve sobre os dias de violência e alcoolismo de seus vizinhos, das brigas e fofocas. Sua escrita criticava as vivências que os olhos e ouvidos lhe impregnavam e a violavam constantemente e sem possibilidades de rompimento. Um mundo sem futuro. Um mundo de buscas constantes por dinheiro vindo da catação de papel, lenha, metais e plásticos para serem vendidos e com os míseros tostões as vezes alimentava-se e os filhos. Dias que nada tinha para colocar no fogão. “Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um pedaço a cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno. E meu João disse: - Que mãe boa!”.  Algo tão simples, mas diante da falta torna-se abissal.
Os dias se seguiam entre a penumbra porque a luz foi cortada por falta de pagamento. Dias sem sabão para lavar a roupa e três semanas se passaram até que tivesse algum tostão para comprar sabão para a limpeza da sujeira que lavava no rio distante do barracão.
Dias de buscar água na torneira, única para toda a favela e a fila era grande, quando iam as mulheres a fofoca corria solta, mas quando os homens apareciam pegavam a água e iam adiante. Acordava muito cedo para a lida de catar papel. Havia dias em que pensava em se matar e a seus filhos, pois o fardo era pesado e difícil de carregar sozinha.   
Dias que se ocupava de concertar o barraco coberto de papel e chovia dentro, tapava um buraco surgia outro. Relata dias em que se sentia enfraquecida pelo pouco alimento que este recebia. A morte rondava a favela e os favelados a levar adultos e crianças em tenra idade. Muitos morriam pela violência, mas também pelo suicídio causados pela ausência de tudo.
Todo dia era dia de carregar lixo (quantos quilos não carregou sobre suas costas fracas), entregar aos compradores, conseguir dinheiro e comprar comida, quando este era suficiente ou mesmo catar comida descartada, algumas estragadas e outras não, algumas faziam mal e outras alimentavam o corpo carente da ração mínima para viver.
Um livro que dói ter nas mãos, palavra após palavra ele revela um mundo que por vezes não compreendo. O livro tem esse nome, pois em “1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. E por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós os pobres, somos os trastes velhos”. Profunda visão a denunciar percepção de como as coisas se organizam para pobres e favelados.
Após o lançamento do livro no Brasil ele foi traduzido para 20 idiomas, por aqui muitos como eu nunca ouvi falar de Carolina, me parece que continuamos a desperdiçar o talento e a genialidade engendradas em um corpo nascido em um lugar que determinou muito de sua trajetória de vida. Mas esse lugar também determinou sua resistência. Uma grande mulher uma sobrevivente das condições sociais que a vida lhe impôs, de escrita cheia de histórias simples mas de profunda complexidade, dotada de análise crítica de uma realidade vivida, que pouco ou nada mudou para um país nos dias atuais de 2018 e só olhar e ver. Talvez é melhor não ver, não perceber, tornamos alguns invisíveis ao olhar. O que não vemos não sentimos, não nos afeta.
Ao concluir a leitura meu universo de percepção de mundo se ampliou pela grandeza de Carolina que por vezes me deixou pequena, sua sagacidade vi em poucos livros ou mesmo pessoas que encontrei no caminho, que na menor fragilidade caem e por vezes não levantam, sucumbem.
Carolina se levantou muitas e muitas vezes e seguiu em frente nas condições de uma sub vida, talvez essa seja sua maior lição.
Enquanto estiver por aqui falarei de seu nome e sua história como homenagem a sua resiliência e resistência diante de uma vida tão miserável que lhe fizeram vergar, mas não quebrar. Sua escrita foi terapêutica, um grito que não foi sufocado, pois a publicação de seus outros livros ecoam ainda hoje a causar dor aos que se permitem conhece-la. 

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 


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