29 novembro 2019

A EFICIÊNCIA DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE OU DE BOAS INTENÇÕES O INFERNO ESTÁ CHEIO

Grupo de acompanhamento de pessoas com hipertensão e diabetes. Rio Negro, 2007.



Ernande Valentin do Prado

Sempre considerei a Educação em Saúde como uma das atividades mais relevantes do dia-a-dia da Saúde da Família. Em algumas equipes foi possível fazer ações diariamente e em diversos lugares do território e formatos. 
― E sabe de uma coisa? 
Era divertido, além de cumprir uma importante função junto a comunidade. 
As ações variavam entre reuniões em igrejas, escolas, associações de moradores, participação em festas da comunidade, nas escolas, bailes, distribuição de panfletos em porta de supermercados, bancos, rastreamento de doenças crônicas, comemorações de dias especiais, como o dia da mulher, dia da consciência negra, entre outras.  
 Mesmo com a diversidade, os resultados nem sempre eram como esperávamos. Lembro bem de um dos grupos que acompanhávamos porque foi uma das experiências mais significativas, até hoje, quase vinte anos passados.
O grupo se reunia uma vez por mês há quase um ano. Já havíamos discutido, comentado, falado, dançado, pintado e repassados coisas e nada de conseguir melhorar os níveis de glicemia, nosso objetivo principal com o grupo. Acho que não tinha nada que esse grupo não soubesse até para ensinar. 
No entanto, continuavam frequentando os encontros mês após mês. Não entendia o porquê.  
Era um grupo pequeno, mais ou menos dezoito pessoas. Dezesseis mulheres e dois homens. Todos os meses ao menos doze pessoas estavam presentes ao encontro. E não era só isso, além de participar, o grupo expressava satisfação, sentia-se acolhido, prestigiado por contar com a presença da equipe na escola do bairro:
― Assim não precisamos caminhar até o centro.  
Dizia uma das participantes.
O fato da glicemia não baixar, para maioria delas, parecia não incomodar. A tarefa que nos impúnhamos era evitar que aquelas pessoas tivessem agravos decorrentes do diabetes. Mas elas pareciam estar ali por outros motivos. Não exatamente os nossos e isso era incompreensível.
Em um destes dias de reunião, no meio da programação, chamei a Nutricionista, a Técnica de Enfermagem, a Profissional de Educação Física e alguns Agente Comunitário de Saúde (ACS) e propus abandonar o planejamento e tentar uma coisa diferente.
Naquele dia pedimos para as pessoas nos contar o que mais lhes dificultava controlar a glicemia. Fizemos um acordo: nada falaríamos para criticar ou corrigi-los.
No início ficaram desconfiados, sem acreditar que poderiam contar tudo de verdade. E só aos poucos foram contando uma coisa mais inconfessável do que a outra. 
Seu Gastão disse que adorava pé de moleque e quando pensava que não poderia mais comer, mais comia. Chegava a devorar um pacote com cinquenta barras por semana. 
Dona Arlete disse que adorava carne gorda e não conseguir evitar. Comia todos os dias.
Dona Sandra, irmã de Dona Arlete, não comia carne gorda, mas fumava três carteiras de cigarros por dia.
Por isso essa pressão não baixa nunca, pensei sem dizer nada (sem dar me conta da ignorância disso, afinal de contas nunca tem apenas uma cousa) . 
Todos foram contando seus segredos, coisas que escondiam da gente, talvez para evitar críticas, talvez apenas para evitar que desistíssemos de fazer os encontros. 
Como combinado, nenhuma crítica fizemos, apesar de ter sido muito difícil ouvir e nada dizer, nada prescrever. Quase não consegui cumprir, mas me segurei; a Técnica de Enfermagem precisou ser contida algumas vezes; a Nutricionista ficou se policiando o tempo todo, visivelmente inconformada: sentava, levantava, andava, fazia que ia falar e desistia. Os ACS pareciam os mais tranquilos com o que ouviam, talvez porque nada fosse novidade para eles.
No final, mesmo com o coração em chamas, conseguimos manter o pacto e manter a confiança deles. 
― Sabe como é, o que é pactuado precisa ser cumprido, do contrário perde-se a credibilidade. 
Quando a roda terminou de girar, ainda tontos, distribuímos as medicações, os pedidos de exames, entregamos os resultados das avaliações, fizemos a costumeira fila indiana de abraços e renovamos o compromisso de voltar no mês seguinte e fomos embora em silêncio.
No mês seguinte voltamos. Antes da reunião mediamos a glicemia de todos. E naquele dia, muitas pessoas estavam com a glicose em patamares melhores do que nos meses anteriores. Começamos a reunião como sempre fazíamos, perguntando como havia sido o mês delas. 
Seu Gastão, que havia falando da dificuldade em parar de comer pé de moleque, disse que durante o mês diminuiu a quantidade de pé de moleque que comeu. Não chegou a comer mais de três doces por semana.  
Dona Arlete, que comia carne gorda diariamente, disse que conseguiu deixar a carne gorda para os fins de semana.
Quase todas as pessoas presentes à reunião tiveram uma história de superação para contar. Nem todos apresentaram melhora na glicemia por causa disso, mas todas se sentiam melhores e em condições de enfrentar seu problema.
Depois disso conseguimos aceitar melhor que nem sempre é preciso falar nas ações educativas e que abrir espaços para que as pessoas possam expressar-se sobre si mesmas pode dar um resultado muito melhor. A outra coisa que aprendemos é que os resultados, em um grupo educativo, não são necessariamente a melhora do nível de glicemia e da pressão arterial. 
O controle da diabetes não se resume a questão alimentar, nem de exercícios físicos, menos ainda de ter esse ou aquele conhecimento sobre a doença.  E principalmente, prescrições não resolvem a maioria dos problemas. Freire diz que toda prescrição é a imposição de uma consciência sobre a outra. Por isso ela é alienadora.
Precisamos aceitar que a maior parte das vezes não temos as respostas que imaginamos. Quase sempre as pessoas só precisam de ajuda para perceber o que já sabem e como podem utilizar melhor esse saber.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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