10 janeiro 2020

INSUPORTÁVEL

Tatuagem de parede, João Pessoa, 2019.


Ernande Valentin do Prado

Eu tive um amigo, quando estava no segundo grau. Não, eu tive muito amigos no segundo grau. Este em particular foi meu professor de biologia. Quando surgiu a onda das videolocadoras, ele abriu uma no terminal de ônibus da cidade dormitório em que vivíamos.
Eu passava lá quase todos os dias, depois do dia trabalhado na metalúrgica onde deixava meus sonhos em troca de migalhas. Era recém-chegado na região gelada e de clima instável de Curitiba, com suas culturas, códigos e linguagens diferentes do que eu vivia no norte do Paraná. Achava tudo aquilo insuportável.
Amargava uma solidão que ninguém conseguia entender e uma consciência de classe que me impulsionava a levantar todo dia e tentar de novo.
Fábio também era meio assim.
Conhecia há pouco tempo, mas era como se já tivéssemos vividos outras vidas juntos, se isso existisse.
Ele era, além de dono de videolocadora e professor de biologia, socialista militante e comprometido em mudar o mundo. Todos éramos, nesta época, embora pareça difícil acreditar hoje em dia.
Um vez, em nossos bate-papos filosóficos diários, ele  me:
“o insuportável na vida, é que na vida nada é insuportável”.
Lembro que fiquei com aquilo na cabeça muito tempo e ainda hoje não me sai da cabeça esse diálogo. Lembra dele atrás do balcão atendendo as pessoas e eu do outro lado divagando. E Fábio completou:
o ser humano se acostuma a tudo.
Sobre vários aspectos perturbadores, constatar essa verdade foi e continua sendo insuportável, por mais estranho que pareça.
Naquele dia e ainda hoje, toda vez que lembro dessa conversa, vem a minha cabeça a imagem de um homem, ainda bem jovem, mas já com todos os dentes cariados, o cabelo sujo e desgrenha, enfiando a mão em uma lixeira, em frente ao Shopping Itália e comendo o que tirava de lá. Era uma cena nojenta, porque comer lixo é nojento e principalmente porque um ser humano comendo lixo, enquanto sobra comida no mundo, enquanto outros seres humanos não sabem o que é fome, é nojento.
Essa é uma de minhas primeiras lembranças da cidade de Curitiba, aquela vendida como se fosse de primeiro mundo. E, naquela época, eu ainda achava que no primeiro mundo não existia ninguém comendo lixo para não morrer de fome, nem morando na rua e passando frio.
Ver aquilo pareceu-me insuportável e ainda parece, mas de fato nada na vida é insuportável.
Três dias depois desta conversa, Fábio trancou-se em sua garagem, ligou o motor do caro e deixou de suportar essa vida insuportável.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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