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Tatuagem de parede, João Pessoa, 2019. |
Ernande Valentin do Prado
Eu tive um amigo, quando estava no segundo grau.
Não, eu tive muito amigos no segundo grau. Este em particular foi meu professor
de biologia. Quando surgiu a onda das videolocadoras, ele abriu uma no terminal
de ônibus da cidade dormitório em que vivíamos.
Eu passava lá quase todos os dias, depois do dia
trabalhado na metalúrgica onde deixava meus sonhos em troca de migalhas. Era
recém-chegado na região gelada e de clima instável de Curitiba, com suas culturas,
códigos e linguagens diferentes do que eu vivia no norte do Paraná. Achava tudo
aquilo insuportável.
Amargava uma solidão que ninguém conseguia
entender e uma consciência de classe que me impulsionava a levantar todo dia e
tentar de novo.
Fábio também era meio assim.
Conhecia há pouco tempo, mas era como se já
tivéssemos vividos outras vidas juntos, se isso existisse.
Ele era, além de dono de videolocadora e professor
de biologia, socialista militante e comprometido em mudar o mundo. Todos éramos,
nesta época, embora pareça difícil acreditar hoje em dia.
Um vez, em nossos bate-papos filosóficos diários,
ele me:
— “o insuportável na vida, é que
na vida nada é insuportável”.
Lembro que fiquei com aquilo na cabeça muito tempo
e ainda hoje não me sai da cabeça esse diálogo. Lembra dele atrás do balcão
atendendo as pessoas e eu do outro lado divagando. E Fábio completou:
— o ser humano se acostuma a tudo.
Sobre vários aspectos perturbadores, constatar
essa verdade foi e continua sendo insuportável, por mais estranho que pareça.
Naquele dia e ainda hoje, toda vez que lembro
dessa conversa, vem a minha cabeça a imagem de um homem, ainda bem jovem, mas
já com todos os dentes cariados, o cabelo sujo e desgrenha, enfiando a mão em
uma lixeira, em frente ao Shopping Itália e comendo o que tirava de lá. Era uma
cena nojenta, porque comer lixo é nojento e principalmente porque um ser humano
comendo lixo, enquanto sobra comida no mundo, enquanto outros seres humanos não
sabem o que é fome, é nojento.
Essa é uma de minhas primeiras lembranças da
cidade de Curitiba, aquela vendida como se fosse de primeiro mundo. E, naquela
época, eu ainda achava que no primeiro mundo não existia ninguém comendo lixo
para não morrer de fome, nem morando na rua e passando frio.
Ver aquilo pareceu-me insuportável e ainda parece,
mas de fato nada na vida é insuportável.
Três dias depois desta conversa, Fábio trancou-se
em sua garagem, ligou o motor do caro e deixou de suportar essa vida
insuportável.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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