21 janeiro 2020

TELHADOS DE PORTO ALEGRE


Maria Amélia Mano

De fones, escuto Nei Lisboa no ônibus em meio ao congestionamento. Venta, ali se vê, onde o arvoredo inventa um ballet. Lembro que ventos sempre fazem parte da minha escrita, assim como invenções. Mentiras pequenininhas, juro. Talvez por isso não me sinta à vontade para escrever sobre verdades, causos. Talvez agora consiga porque a história é a minha, de dor minha. Se fantasiar um pouco sobre ela, sobre mim, posso ser perdoada. Por mim.
Enquanto invento aqui pra mim, um silêncio sem fim, deixando a rima assim, sem mágoas, sem nada. E lembro que ela veio, a rima, a mágoa, o vírus. Alimentado de gotas de corticoide e desorganizações, despedidas, desamores, desajeitamentos, desimunidades, desmanches desembarcados nos meus olhos e olhares. Herpes. Coisa miúda que se fez imensidão. Visão que embaçou. Eu que embacei. Todas as casas ficaram velhas e mudas, de repente.
Tive que parir paciência com dores, ardores, ardidos de aciclovir. Mais do que tempo de medo e penumbra, foi tempo de sentir e ouvir. Foi tempo que tive que deixar passar suave, sereno, solene e solitário, desejando cicatrizes invisíveis. Não queria nenhuma manchinha, marquinha, risquinho no meio do sol de fim de dia que sempre admirei, na ponta do nariz dos amigos, na beira da linha da prosa poética que escrevo. Do alto de algum precipício.
Na recuperação, precisei escurecer todas as telas, reduzir todos os brilhos. Deixar tudo romântico à meia-luz de lampiões de roça. Luz de outono em pleno inverno. Mas tem no outono uma luz, que acaricia essa dureza cor de giz, que mora ao lado e mais parece outro país, que me estranha mas não sabe se é feliz. Felicidade, eu não tinha certeza, mas entendi que nenhuma luminosidade poderia ser maior e mais linda que a do dia.
Até hoje, mantenho tudo assim, meio clarinho, meio brilhinho, pirilampicamente. Respeitando aquela noite que precisava atravessar. Travessia feita aos poucos, de leve. Como de leve, fui voltando a enxergar. Nunca como antes. Melhor. O tempo se foi, há tempos que eu já desisti dos planos daquele assalto, e de versos retos, corretos. Não poderia voltar. Porque vivi cada pedaço de escuridão, voei de olhos vendados, me perdoei de escolhas, perdi o medo.
  O resto da paixão, reguei. Vai servir pra nós. O doce da loucura é teu, é meu pra usar à sós. E é isso, verdade um pouco romanceada. Desse escuro veio mais paixão, coragem, um tanto de loucura, solitária e dividida. Acho que estava mais embaçada antes. Acho que vejo tudo melhor agora. Aqui, do alto desse ônibus parado no trânsito dessa Porto Alegre que amo e odeio. Também quando desço enfim e caminho pelas ruas confusas.
Ainda de fones, sigo encantada pelo dia, incandeada pela luz leve. Todo brilho me alegra, mesmo depois de quase um ano. Assombro que não quero perder. Sequela única que não quero curar. Chego no Parque da Redenção, árvores que se entrelaçam. Entrada de rua que é minha. Porta de prédio, esperança e chegança. Abraço. Eu tenho os olhos doidos, doidos, já vi. Meus olhos doidos, doidos, são doidos por ti.

Texto para o livro Causos Clínicos: quando fui paciente
Figura: Paul Klee

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