Maria
Amélia Mano
De
fones, escuto Nei Lisboa no ônibus em meio ao congestionamento. Venta, ali se vê, onde o arvoredo inventa um
ballet. Lembro que ventos sempre fazem parte da minha escrita, assim como
invenções. Mentiras pequenininhas, juro. Talvez por isso não me sinta à vontade
para escrever sobre verdades, causos. Talvez agora consiga porque a história é
a minha, de dor minha. Se fantasiar um pouco sobre ela, sobre mim, posso ser
perdoada. Por mim.
Enquanto invento aqui pra mim,
um silêncio sem fim, deixando a rima assim, sem mágoas, sem nada. E lembro
que ela veio, a rima, a mágoa, o vírus. Alimentado de gotas de corticoide e desorganizações,
despedidas, desamores, desajeitamentos, desimunidades, desmanches desembarcados
nos meus olhos e olhares. Herpes. Coisa miúda que se fez imensidão. Visão que embaçou.
Eu que embacei. Todas as casas ficaram velhas e mudas, de repente.
Tive
que parir paciência com dores, ardores, ardidos de aciclovir. Mais do que tempo
de medo e penumbra, foi tempo de sentir e ouvir. Foi tempo que tive que deixar
passar suave, sereno, solene e solitário, desejando cicatrizes invisíveis. Não
queria nenhuma manchinha, marquinha, risquinho no meio do sol de fim de dia que
sempre admirei, na ponta do nariz dos amigos, na beira da linha da prosa poética
que escrevo. Do alto de algum precipício.
Na
recuperação, precisei escurecer todas as telas, reduzir todos os brilhos.
Deixar tudo romântico à meia-luz de lampiões de roça. Luz de outono em pleno
inverno. Mas tem no outono uma luz, que
acaricia essa dureza cor de giz, que mora ao lado e mais parece outro país, que
me estranha mas não sabe se é feliz. Felicidade, eu não tinha certeza, mas
entendi que nenhuma luminosidade poderia ser maior e mais linda que a do dia.
Até
hoje, mantenho tudo assim, meio clarinho, meio brilhinho, pirilampicamente. Respeitando
aquela noite que precisava atravessar. Travessia feita aos poucos, de leve.
Como de leve, fui voltando a enxergar. Nunca como antes. Melhor. O tempo se foi, há tempos que eu já desisti
dos planos daquele assalto, e de versos retos, corretos. Não poderia
voltar. Porque vivi cada pedaço de escuridão, voei de olhos vendados, me
perdoei de escolhas, perdi o medo.
O resto da paixão, reguei. Vai servir pra
nós. O doce da loucura é teu, é meu pra usar à sós. E é isso, verdade um
pouco romanceada. Desse escuro veio mais paixão, coragem, um tanto de loucura,
solitária e dividida. Acho que estava mais embaçada antes. Acho que vejo tudo
melhor agora. Aqui, do alto desse ônibus parado no trânsito dessa Porto Alegre
que amo e odeio. Também quando desço enfim e caminho pelas ruas confusas.
Ainda
de fones, sigo encantada pelo dia, incandeada pela luz leve. Todo brilho me
alegra, mesmo depois de quase um ano. Assombro que não quero perder. Sequela
única que não quero curar. Chego no Parque da Redenção, árvores que se
entrelaçam. Entrada de rua que é minha. Porta de prédio, esperança e chegança.
Abraço. Eu tenho os olhos doidos, doidos,
já vi. Meus olhos doidos, doidos, são doidos por ti.
Texto para o livro Causos Clínicos: quando fui paciente
Figura: Paul Klee
Figura: Paul Klee
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