Estela Márcia Rondina
Scandola
1983-84 foram anos de intensas mudanças nos rumos da minha
vida... acho que eram os furdunços das lutas por democracia no Brasil que se
juntavam nas minhas entranhas e eu, em crise permanente ia decidindo para onde
caminhar.
No Serviço Social concursos nem pensar e os empregos só por
indicação mesmo. Pelo menos era assim em Mato Grosso do Sul. Quando formava uma
turma, as bacharéis continuavam nos seus empregos de outras profissões. Quando
alguém conseguia um emprego na área era uma verdadeira festa. Eu não tinha
ideia do que seria da minha vida.
Na coordenação da comissão de formatura a vida tinha voado
em dezembro de 83. Além de baile (com direito a vestido e tudo), o casamento da
Sola no dia seguinte, o retorno para o churrasco da turma e o Geraldo envolvido
nisso tudo era bom mesmo! O moço bonito, olhos profundos, dançava guarânia e polca como ninguém e me beijando sem parar
me colocava acesa em todos os meus lados do viver.
Tudo me fez perder a entrevista de emprego na SEBEM que o
tio Moa tinha agendado. E, para satisfação minha era a Profa. Iracy que ia me
entrevistar. Enfim, fiquei maus na fita. O tio telefonou e perguntou como
estava tudo. Chamou a atenção e disse se eu realmente queria o emprego.
Reafirmei que sim. Era o máximo ter emprego logo depois de formada. Acho que
era um diferencial de classe bem favorável a mim que não fui aluna brilhante.
Tinha a indicação do tio vereador e era muito envolvida nas atividades da
política de assistência social.
Remarquei pessoalmente a entrevista e a fiz de forma bem
responsável. Tudo acertado. Eu trabalharia na gestão da Secretaria, salário
razoável e eu ia ficar junto com as assistentes sociais de referência à época.
A maioria já eram ligadas ao PMDB igual ao partido do meu tio. Eram
consideradas bastante responsáveis junto aos serviços em Campo Grande.
Quando saí sentei no banco da praça da Cabeça de Boi e
fiquei à espreita de aparecer alguma alegria, daquelas que aparecem quando algo
bom acontece na vida. Era só um fio. Nada de avalanche. Havia um contentamento
porque ia ter trabalho na área. Não sabia se ligava prás meninas prá falar ou
se estava com vergonha. Cidoca, Ana, Joana, Vani... será que iam achar o que?
A falta de gritos de felicidade era também o lugar de
trabalho – na gestão, planejamento. Quando o trem passou barulhento e em
silêncio – era de carga – mirei nos vagões e lembrei das conversas de família
que, quando o trem chega na estação, a gente sobe e segue o destino. Depois que
ele vai, a oportunidade passou. Lembrei que, na verdade, ter um emprego na
área, com ajuda do tio Moa iria ser uma notícia de alegramento na família. E eu
poderia me sustentar com a profissão... seria um orgulho, uma passagem de fase.
Até ali eu me sustentava trabalhando muito, mas não era na profissão.
Fui caminhando pela Barão e cheguei em um dos territórios
dos meninos e meninas de rua. Ali era quase o lugar fixo deles. Peguei o papelão
e sentamos em bando ali em frente onde seria a casa do estudante. Denis chegou:
e aí, que tá pegando? Ele era uma lourice de amarelo claro nos cachos do cabelo
que teimavam em aparecer mesmo ele cortando sempre com gilette. Olhos azuis,
pele rosa e, assim como eu, sempre de jeans e camiseta larga.
Denis chegava sempre cedo de algum lugar que eu não sabia,
passava o dia todo guardando carro, almoçava no GEMT. Não tinha parente na rua
e geralmente não ficava em bando. Usava sempre um boné azul. Mesmo sendo,
naquela época, a descida das Moreninhas e do Nova Lima em bando, a maioria não
tinha mais informações dele. Vivia esquálido e só se abandava no momento da
cola.
Conversei aqui e acolá, planejamos o passeio de sábado na
lagoa do CEASA. Esqueci que tinha festejos de formatura... confundi tudo.
Pensava, como ataque às ideias, no emprego. Deixo a rua? Que roupas vou poder
vestir? Elas usavam tudo combinante... e eu vou fazer o que? E se eu não tiver
tempo para a rua? Vou ficar só na rodoviária com as meninas? Aguento ir pelas
madrugadas ao CEASA e durante o dia ir prá Secretaria?
Almocei em casa engolindo. Quando eu chegava da rua só
lavava as mãos e, no máximo, o rosto. Nunca me sentia suja depois da rua.
À tarde, encontrei a Dáugima nas Americanas (era um programa quase
shopping) e fui logo falando do emprego certo, da rua, dos meninos... das
frestras de alegria possíveis. O que farei em 84 que já vinha chegando? Minha
colega de pastoral do menor concordava que a SEBEM era segura e a rua bem
insegura e nem era emprego. Havia a importância e o status de estar no
planejamento... fomos juntas pro Auxiliadora.
Ir. Neide me ouviu, olhou, acolheu e só dizia: veja o que é
melhor... Lá pelas tantas me informou que havia a possibilidade de uma bolsa de
um salário mínimo para o meu trabalho no período noturno. Havia uma lufada de
alegria naquela proposta. Tinha alegria mas não tinha dinheiro. Tinha gentes,
rua, violências, correria, brigas, sopão, noites sem dormir... e eu olhava na
outra proposta e tinha papeis, secretárias, roupas ajeitadas e até perfume...
cabelos arrumados...
E tinha um outro ponto: meu pai tinha sonhado que eu ia ser
doutora e eu trabalhando em gabinete, talvez fosse mais próximo do que esperava
ele de mim. E a secretária que eu iria ter para datilografar os projetos, os
ofícios... (assistente social importante jamais datilografava seus documentos.
Isso era não respeitar o valor da profissão, o seu status profissional). Não
decidi nada e fui saindo de volta prá casa.
Na saída do Auxiliadora eu poderia ter ido pela Mato Grosso,
mas fiz a curva e desci pela Maracaju. Encontrei uma turma num beco antes da
Rui Barbosa. A cola rolava solta e riam muito. O tempo tinha fechado prá eles
porque tinham chegado muito chapados no GEMT. Sem almoço e com a promessa de
pão com mortadela a tarde aguardavam.
Cadê o Denis? O Marciano
respondeu que tinha ido almoçar e não voltou. Que tava esquisito e que tinha
ficado no GEMT. Tinha uma dor na barriga, que tinha ido pela manhã e não tinha
voltado mais. Mas estava com cara de doente? Sei lá, era só esquisito. Nem veio
prá roda.
Dei tchau e lá veio, vestido,
sapato, emprego, discurso na formatura... churrasco, papai que não vinha, tio
Bim vinha... enfim, formatura... com tensão e decisões. Ir a Itaporã, ser
madrinha de casamento, datilografar trabalhos, receber os dinheiros, responder
às propostas de trabalho... e ir atrás do Denis. Essa foi a prioridade.
Su e Sonia quase que me abraçaram
de felicidade quando cheguei. Temos uma situação que é sua cara. E eu: minha? O
Denis tá com problemas? Su olhou e disse: Denis menstruou. Só isso! E não quer
conversar com ninguém.
Entrei feito furacão procurando a
pessoa. Nem tive tempo de pensar no tamanho do desafio. Denis olhava pro chão
sentado na cama. Não me olhou, não se mexeu... Agachei, estendi a mão e ele a
segurou. Eu: como eu lhe chamo? Ele: Do jeito que você quiser. Ficamos quietos.
Pisquei prá pessoa da porta e levantei o queixo. Entenderam e saíram...
Pessoa, eu menstruo. E, agora
você vai menstruar sempre. Ele fez muxoxo com a boca. Sentei ao lado na cama.
Ficamos de mãos dadas. Não saberia lembrar se foi muito tempo. -Deram modess
prá você colocar? Fez que sim com a cabeça. – Se quiser podemos rir da cara do
povo... rimos, rimos muito... nem sabia se estávamos rindo da mesma coisa. Eu
era de nervoso mesmo. Não tinha aprendido como lidar com a realidade.
Com quem vamos conversar sobre
isso? – Não sei. E onde vamos ficar assim, até acostumar com a ideia? Rimos
muito e ele chorava ao mesmo tempo. E para onde vamos hoje? – prá minha casa.
Aí soube que Denis tinha família e,
portanto, não tinha direito ao abrigo. Lá na sua casa a novidade vai ser
conhecida? Não! Silêncios, gritos insanos me chamavam pro chão... a quietude me
enlouquecia... e agora?
Você quer que eu vá junto? E o
Denis: não. Então vou providenciar outros modess prá você... e ele: dá não...
não vai dar prá chegar em casa com essas coisas. E eu: como faremos?
Fui atrás de conseguir carro,
absorvente (não existia essa palavra... tudo era modess até surgir o sempre
livre!). Menino menstruado e eu... sem conversar nada direito, sem tempo e eu
sem emprego certo. E ainda tinha a formatura chegando e o Geraldo gostosão...
Pessoa, vamos prá onde? E ele: prá minha vó lá na favela Dona Neta. Lá veio o motorista, o carro e rumamos. Nunca
tinha visto uma Kombi chegar tão rápido. Era prá se livrarem do problema ou era
mesmo preocupação mesmo? Acho que era um misto.
A avó saiu do barraco abriu os
braços e acolheu a Denise. Olhei prá avó, pisquei e disse que alguém voltaria
no dia seguinte prá pegar a Denise. Denis olhou feio por baixo do boné: era bom
vim você. Aiaiaiaiai e a formatura, o casamento da Sola, o churrasco da
turma... e eu: vou tentar, mas acho que vai dar.
Cheguei em casa mais de 10 da
noite. Comi um pouco de polenta, um pedaço de linguiça e me larguei no sofá.
Volinha e Dale vieram perguntar como eu estava... e o trabalho? Falei que tinha
duas propostas... uma com mais dinheiro e outra com mais ventos alegres...
Volinha saiu quieta e Dale falou que depois eu falasse o que eu tinha decidido.
No dia seguinte amanheci na SEBEM
e propus que eu fosse contratada como assistente social no GEMT. Não foi aceito
e ainda me disseram: você é sobrinha de vereador, não fica bem um lugar assim.
Temos um bom lugar prá você. Vamos começar na primeira semana de janeiro e você
já vai estar aqui. Sem falta! Agora você cuida da formatura e depois das festas
de fim de ano vem aqui.
Já tinha esquecido até do natal e
ano novo. Muito difícil a realidade da família que queria recolocar meu pai de
novo na convivência. Mas era difícil... nem na formatura não viria, embora
desse a vaca para o churrasco.
Fui cuidar da formatura e ia
todos os dias na casa da vó da Denise até que o Denis voltou prá rua.
Além da agenda imensa de coisas a
fazer, das festas a curtir... ainda planejamos a viagem prá Machu Pichu... Vani
deu a ideia e fizemos o grupo com Ana e Celina. Tudo caminhando. Não voltei prá
falar que não ia prá SEBEM, até porque acho que nem pensei que eu estava
desistindo. Essa falta de respeito com as assistentes sociais e com o meu tio
marcou minha vida profissionalmente e correu o rastrilho da notícia. Eu esqueci
e, sem ninguém prá me lembrar insistentemente, nunca mais compareci lá. Hoje
sei que não se sai pela porta dos fundos sem necessidade.
Quando chegamos da viagem ao Peru, lá
pelo final de janeiro, passei a ganhar um salário mínimo na forma de bolsa e
aumentei a quantidade de trabalhos datilografados. Assim me sustentava e
dobrava tudo o que podia prá ajudar financeiramente o movimento. Em 1984, ah...
esse foi o das Diretas Já, da ANAS, do movimento de meninos e meninas de rua! E
eu estava lá...
Fiquei sem pensar nisso até 2018
quando fui providenciar meu tempo de serviço no INSS... cadê os anos de
contribuição entre 1981-1986?
Não foi o Denis, Ir. Neide,
Marciano que me fizeram tomar essas decisões profissionais... Foi a necessidade
que o meu trabalho tivesse fios de alegria e, mesmo que em meio à enxurrada de
desgraceira, eu veja a luz de possibilidades... é também disso que se trata quando
decidimos na profissão. Nem todo mundo podia decidir pelo menos dinheiro. Eu
era uma privilegiada em poder fazer isso...
Não afrontei diretamente a cada
um da família, mas é certo que, no conjunto, muitos se sentiram agredidos por eu
não querer o mais reto, o mais certo prá vida de futuro garantido. Eles tinham
razão em muitas coisas: eu dancei financeiramente e na seguridade individual, mas muitos se salvaram exatamente no rastro das lutas em que estive.
É verdade que histórias não pagam
as abóboras necessárias para matar todas as fomes, mas é também mais certo
ainda, que é das histórias de gente que plantou tâmaras que as gerações vivem
na expectativa do saboreio...
Estela
Márcia Rondina Scandola
57
anos na inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos,
ainda como convidada.
Boa noite, Estela. Muito interessante a forma como você escreve e externa sentimentos vividos em tempos atrás. Mesmo estando em outro Estado, Rio Grande do Norte, me transportei no tempo e revivi momentos de minha vida. Obrigada!
ResponderExcluirainda sinto o cheiro da rua! sou tão precisada...
ExcluirEstela querida! Que máximo!!!! Que leitura maravilhosa! Obrigada por compartilhar momentos tão importantes da história e por me trazer as memórias de um trabalho de rua que me ensinou a fazer e do qual tenho tanto orgulho!!! E o seu início não poderia ter sido diferente! A paixão te move!!
ResponderExcluirJucy, somos aprendizes uma da putra, né?
ResponderExcluirQue maravilha.
ResponderExcluirAdorei as memórias.
vou contando e elas vão ficando leves... acho que é uma forma de colocar bolhas de alegria.
ExcluirDe fato leitura intensa e carregado de significados e sentimentos.
ResponderExcluirQue nos sirva de inspiração e reflexão.
Sua história ja vem!
ExcluirMulher, vc conta estas histórias e eu do lado de cá chorando, rindo, e feliz por ter tido a oportunidade de ter convivido, ao vivo e a cores com vc, nem que seja por um dia só.
ResponderExcluirVc é um mulherão da porra. Quando crescer vou ser igual a vc.
Beijocas
Há Braços
Há braços
ResponderExcluirEstela querida q delícia ler e relembrar este tempo maravilhoso q com certeza me fez ser o q sou hj...vivi intensamente e me transformei com os meninos e meninas....e obrigada por me citar
ResponderExcluirEstela , que memória fantástica! Quantos detalhes articulados com sabedoria, que tornam deliciosa a leitura . Gostei !
ResponderExcluirQue bom ter feito parte de sua história.
E , continue querida , plantando tâmaras bem como saboreando as que alguém plantou carinhosamente para você .
Abraço
Ana Lúcia
Você sempre está nas minhas histórias... e em tantas lembranças do que construímos no movimento
ExcluirEstela,que bela trajetória de vida e que maturidade vc sempre teve em tomar decisões...parabéns pela escolha, são pessoas especiais como vc que fazem diferença na vida dos outros.
ResponderExcluirvamos tentando flanar na vida... num é?
ExcluirEu li duas vezes. A segunda, chamei minha mãe para dividir tamanha esperteza!
ResponderExcluirQueria ficar perto enquanto vc escreve...daí eu aprenderia a ser mais leve
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