Estela Márcia Rondina Scandola
Santo era um cabra muito, mas muito
legal mesmo nos ensinamentos que fazia depois que aprendia algo. Tavo eu em uma
capacitação para conselheiros de saúde chamada pela Pastoral Social ou era a
CPT, da CUT... não lembro direito..., mas lembro que tinha o Ferrari,
Aparecido, Milício... e o Santo. Naqueles anos era o comum ter uma porção de
homens e quase nenhuma mulher nos cursos de formação. Nesse tinha mulheres, mas
o protagonismo ainda era de homens. Ainda bem que já mudou bem hoje em dia!
Nos anos de 1990 só se iniciava
capacitação ou encontro de trabalhadores rurais a partir do que existia de
política de saúde que era o Funrural. Quando se ia para o atendimento na cidade
que não era para trabalhador rural, embora o SUS já existisse, era “costume”
atender o povo do campo com o carimbo do “indigente”. Então, uma questão
é que o Funrural não “ia existir mais” e prá onde iriam os
trabalhadores rurais acostumados ao “seu” posto de saúde? “seu” hospital...?
enfim, como ir no SUS se lá não sabiam nada do que era a vida no sítio... A
insegurança das lideranças dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais
era imensa. Era como cantar a música “Corre um boato aqui donde eu moro , que
as mágoas que eu choro são mal ponteadas”. O fato é que o povo da cidade,
exceto os sucaneiros conheciam nada ou quase nada do rural sitiante...
As lideranças tinham um discurso bem
afinado com a CUT, ou seja, havia muitos avanços previstos na
Constituição Federal... mas, e os trabalhadores rurais? Falavam da letra das
leis... mas o coração continuava pulsando em dúvidas dos sentimentos da alma
sertaneja... “ Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver, chega lá em
casa pruma visitinha...” Como sempre me corrige o Chico... uai, porque é que
fazer política, correr atrás de direitos é cidadania? Então significa que isso
é da cidade? Será que vamos precisar cravar a rurania como a política pros
assentados, sitiantes?
Os discursos e os sentimentos eram bem
contraditórios e, somente na hora da comida ou à noite, na roda de viola é que
os sentimentos eclodiam e eram compartilhados... “É que a viola fala alto no
meu peito humano e toda moda é um remédio pros meus desenganos; É
que a viola fala alto no meu peito humano... e toda mágoa é um
mistério fora deste plano.”
A música trazia romance, sobretudo
nostalgia... falava-se da terra, das lutas, dos cheiros de chuva... ah, a
música tem essa coisa de trazer da alma os sentimentos e colocar na
roda. Os freirianos presentes dançavam bonito na metodologia... nem
sempre tinham planejado trabalhar com o emocional para além da racionalidade...
Fazíamos tudo: questão geradora, levantamento da realidade, palavras-chaves...
textos e propostas de encaminhamentos... mas e os sentimentos? Então, a viola e
os violeiros e os que balbuciavam se misturavam aos facilitadores dos
enontros... e aí.... kkkkkk bora refazer a programação do dia seguinte. Sempre
tinha muito disso e o Ferrari era aquele que dormia por último até detalharmos
toda a metodologia do outro dia.
O início do SUS foram
riquíssimos em histórias visando a sua implantação e eu aprendia
demais da conta, especialmente com os grupos lutadores e que se organizavam prá
fazer valer as conquistas dos abaixo-assinados, passeatas, ocupações,
caravanas... Eu era mesmo sortuda em viver no meio do povo que se sentia
escritores da história... e, dentre eles tinha o Santo.
Chegou-se, no segundo dia de encontro,
lá na Vila São Pedro, à conclusão que deveriam os trabalhadores
rurais entrar em peso pros Conselhos de Saúde... e todo mundo falando da
articulação necessária porque tinha muita gente que não gostava dos STRs; que
quem fosse usuário realmente estivesse representado prá não deixar uns sabidões
tomar o lugar; que era preciso fazer os secretários de saúde ouvir o
povo do campo; que era forçar o povo da cidade a entender a situação de saúde
de quem morava na zona rural... e... todo mundo falando ao mesmo tempo (minha
função era sempre ir encontrando as ideias centrais e ir anotando em papel de
rolo pregado nas paredes).
Lá pelas tantas, eu penso que foi o
Chicão ou o Aparecido, não sei... que perguntou: mas quem, daqui, tem
experiência com Conselho de Saúde na sua cidade? Santo levantou a mão e ria
pelo canto da boca. Eu, empolgadíssima já fui logo: fala, fala, fala... quero
saber...! E ele disse: Conselho é igual bucho de vaca. Sou conselheiro lá em
Glória.
A minha sapiência abestada advinda de
detentora de curso universitário, especialista em psicologia social tendo como
orientadora a Silvia Lane, encarregada de trabalhar com a formação sindical da
CUT, formada pela Escola de Saúde para capacitar conselheiros, murchei feito
balão furado. E aí ele falou...
Conselho é assim: o secretário de saúde traz um projeto prá ser aprovado. Às veis a gente nem sabe do que se trata, não entende direito, mas a gente fica até orgulhoso de tá ouvindo as palavras bonitas... Se a gente descuida, aprova e pronto. Nem lembra de ruminar. Conselho tem que ruminar. Então tem que avisar pro Secretário que não adianta pressa... ele tem que mandar a proposta antes, explicar de um jeito que a gente entende... É o primeiro estômago...Quando a gente não entende ou quer saber mais, então a gente tem que devolver pro pessoal da secretaria mastigar de novo...
Conselho é assim: o secretário de saúde traz um projeto prá ser aprovado. Às veis a gente nem sabe do que se trata, não entende direito, mas a gente fica até orgulhoso de tá ouvindo as palavras bonitas... Se a gente descuida, aprova e pronto. Nem lembra de ruminar. Conselho tem que ruminar. Então tem que avisar pro Secretário que não adianta pressa... ele tem que mandar a proposta antes, explicar de um jeito que a gente entende... É o primeiro estômago...Quando a gente não entende ou quer saber mais, então a gente tem que devolver pro pessoal da secretaria mastigar de novo...
Hoje fui procurar prá entender direito
e ri muito...
“Ruminação: quando
os alimentos são ingeridos em quantidades adequadas, há uma parada na ingestão
por cerca de duas horas para que haja sedimentação do alimento em camadas no
rúmen e se inicie um processo de ruminação, onde o material menos digerido que encontra-se nas camadas superiores no
rúmen volta para a boca, ou seja, é regurgitado em sucessivas frações de bolos
alimentares, para ser remastigado e re-ensalivado de forma mais completa.”
Fonte: https://is.gd/BfzPtr
Fiquei pensando e pensando... Conselho
que não rumina não é Conselho... tem ligação direta entre esôfago e o
intestino, ou seja, é monogástrico... Agora, se tem quatro cavidades gástricas,
os conselhos então deveriam debruçar-se com várias formas de análise dos
projetos apresentados pelos gestores em saúde... cada análise com sucos
gástricos diferentes... “Diz que eu rumino desde menininho, fraco e mirradinho
a ração da estrada. Vou mastigando o mundo e ruminando e assim vou tocando essa
vida marvada”
No papel pardo tasquei: ruminar sempre
– não engolir o que vem pronto... discutir bastante e devolver pro secretário
prá melhorar... Teve outro algo que o Santo falou que não esqueci jamais: a
vaca sente se o pasto é bom ou não é... ela até come na hora da fome, mas às
veis ela sabe que vai fazer mal. A gente deve sempre olhar o pasto e, se for
preciso, bota prá ruminar um monte de vezes... até a proposta ficar boa! Quando
o estrume é bom, as plantas agradecem... ele vira esterco! E eu pensei: o mundo
vai produzindo vida...
O meu abestamento acadêmico não tinha
entendido a grandiosidade e profundidade do que o Santo falava dos Conselhos de
Saúde. Aprendi e continuo ruminando sobre isso. “Cumpadi meu que envelheceu
cantando, diz que ruminando dá pra ser feliz. Por isso eu vaqueio ponteando e
assim procurando minha flor-de-lis”.
Há pessoas que não entendem ainda a
ruminação de diferentes cavidades gástricas... pensa que conselho é igual
humano, ou seja, monogástrica e então engole o pasto e esfezeia. E aí, se encanta
com o pasto e não rumina... e, o que sai do conselho não serve nem prá esterco!
E, pior, pode ser um esterco contaminado de toxicidade. Tem conselhos e
conselheiros que são mais parecidos aos suínos, pois recebem a realidade feito
alimento dos conselhos e jogam mais da metade sem absorver nada dos nutrientes.
Cumprem as pautas sem se lambuzar de realidade! São conselhos eficientes e
vazios da diversidade da vida... e, a realidade do campo, ah, a realidade nem
sequer as conhece...
Ruminar pode ser um verbo dos
Conselhos de Saúde. O exercício mental e físico de ruminação das pautas e das
realidades em saúde pode construir um ciclo importante entre o pasto aparente e
o que há no solo... quem sabe pudesse a ruminação ser propiciada pelo suco
gástrico ruraniado. Fato é que ainda na atualidade, caso o Santo vivesse nessa
dimensão, a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras rurais ainda não chegou ao
pasto dos conselhos, quanto mais ao primeiro estômago... E, para além da ruminação em si – exercício
cansativo e até irritante - , as decisões ruminadas profundamente
podem ser um esterco rico em de fazer brotar saúde por todos os lados, feito
adubo pro bem viver.
Tem um ditado tido como
certo
Que cavalo esperto não
espanta a boiada
E quem refuga o mundo
resmungando
Passará berrando essa
vida marvada
Estela Márcia Rondina Scandola, 57 anos na
inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como
convidada. Hoje, colaborou nesse texto, Chico Machado.
Em Verdade vos digo Estela vc me encinou a buscar Verdade.Sou um Concelheiro Fiel.por isso SOU LIVRE POSSO FALAR E FAZER A VERDADE OBRIGADO ESTELA MARCIA SCANDOLA RONDINA.GRATIDÃO💜💚🌹
ResponderExcluirMulher, e nossa história de ir na Conferência sem prefeito e com o segurança armado? vou contar qualquer dia desses!
Excluirita lasquera que nessa hora da um certo orgulho danado de ser conselheiro e ter sempre aproveitado a oportunidade de ruminar muitas vezes sobres as questões que envolvem a construção do SUS e ter tido a oportunidade
ResponderExcluiré bão, né? a construção do SUS é mesmo uma colcha de retalhos... ninguém sabe onde vamos conseguir terminar, mas estamos sempre em caminho. Haja agulha e linha prá fazer isso!
ExcluirParabéns Estela sempre brilhante e precisa nas colocacoes que muito tem ajudado a construir um controle social mais forte ensinando gerações de conselheiros como ruminar corretamente nos municípios
ResponderExcluiracho que é só a função de contadora de histórias que construímos juntas, num é?
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