04 fevereiro 2020

MADRUGADA PARA ALMA


Maria Amélia Mano



Me deito ao teu lado. Insone, lembro que ciência tenta explicar sonos, fases, espasmos, sensação de queda livre, pesadelos, mover rápido dos olhos. Tudo registrado em linhas de algum sistema de computador.
Vejo tuas pálpebras baixando devagarinho como pequenas persianas de seda ou linho leve, livre, libélula na luz da lua nua. Renda escura de cílios. Pulinhos da pele, sobressaltos, arrepios, pequenos sustos como se quisesse resistir em vão.
É quando tua forma de celofane vai saindo, se esvaindo, voando, pairando como semente de dente de leão soprada.
- Ei! Aonde vai, assim, de madrugada?
- Vou visitar lugares e pessoas. E não existe madrugada pra Alma.
- Como assim? Que lugares? Que pessoas?
- Parte da minha vida, de mim. Saudades que não diminuo de olhos abertos.
- E eu? Vou ficar aqui sozinha? Quero ir junto contigo.
- Acordada, não pode, amor. Um dia, quer dizer, uma noite, te levo.
Ciência pra vida verdadeira tem que ter o inexplicável da vida verdadeira, o incerto, a dúvida e esse medo do desconhecido mágico que não cabe no tubo de ensaio.
- Tu volta?
- Sempre. Vê se dorme um pouquinho. Descansa.
- Não. Vou te esperar.
Agora, vejo uma ruga entre teus olhos como se algum sonho se aproximasse, invadisse. Inspiração como se quisesse absorver todos os aromas da noite. Expiração como se quisesse desapegar da energia do dia. Profundidade em dois ou três grandes e longos suspiros. E a entrega suave. Sono.
Não sei quanto tempo passou. Lembro só de adormecer logo após te tocar com meus lábios como pouso de beija-flor em galho de jasmim branco cheiroso. Do alívio de te ver sorrindo. Sorriso e abraços de sempre.
- Por onde andou ou voou?
- Longe, bem longe.
Sem medida. Porque vida perde poesia quando se quer prever e medir tudo, demais, sempre. Me conformo em não entender amor, medo, Alma, adormecer, despertar, amanhecer. Ternura e paz no coração quando te reencontro em voo, verso, vento, depois de guardar teu sono e sonho.
- Não vai me contar dos lugares e pessoas?
- Agora que tu dormiu, amor, podemos ir. Vem, me dá a mão...

Texto para a Oficina Santa Sede de Verão

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog