19 maio 2020

AINDA SEMPRE



Maria Amélia Mano

Ainda não sou tão caprichosa pra me render ao vento de revoada renovada.
Ainda não sou tão obediente pra seguir rotas de pássaros.
Ainda não sou tão outono pra farfalhar com as folhas amarelas.
Ainda não sou tão satânica pra ser expulsa do paraíso com serpente.
Ainda não sou tão inocente pra feitiço em tumbas, encruzilhadas.
Ainda não sou tão santa pra verniz fosco, sutiã bege e evitar cachaça.
Ainda não sou tão sóbria pra esgrima, divã, evitar dúvidas, dívidas e drogas.
Ainda não sou tão ébria pra poemas, haicais boêmios na madrugada.
Ainda não sou tão medusa pra empedrar, paralisar com olhar.
Ainda não sou tão medrosa pra usar véu, máscara nos olhos e armadura.
Ainda não sou tão brisa pra contar e cantar cio da terra, cor de terra.
Ainda não sou tão lume pra dourar temperos e temperança, temperatura.
Ainda não sou tão trégua pra vagar, fugir, gemer e inventar tempos.
Ainda não sou tão relva pra mimetizar a lanugem na tua nuca. 
E de todos os aindas, esse último, é único e o único que me enternece.
Por me obrigar a ser promessa, semente, preliminar.
Por me fazer refém da tua presença. Sempre.

Ilustração: Rie Nakajima

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog