Maria Amélia Mano
Pra
Matias, o que saiu, manhã de março ruge entre dentes de nuvens com sol apagado
que queima, teima em nascer. Página em branco é inseto que zune e zuniu no
ouvido durante toda noite. Sequer sono veio no silêncio do não saber. Como escrever
existência a partir de tambor, palavra única dita por Amália?
Copo
de água não mata sede que é como rio e sua correnteza, seu poder de leito e
margem. Matias, o que se foi, tanto a dizer. Como se pudesse listar sonhos não
realizados de um visionário no fim da vida a cismar. Como se pudesse medir
expectativa de Ondina diante da massa do pão a descansar.
Matias
relia rascunhos, horas pobres, cansadas, confusas, solitárias. Amanhã já é hoje
e o pequeno quarto, mais vazio. Sem sossegos ou ilusões, também sem grandes
notícias de fora. Sem cantoria de Isabel. Sem ideias, só a da sobrevivência.
Como um guepardo na savana, aguardando manada.
Dentro
de Matias, ventania e ferida de sobra pra escrever evangelhos. Mas era porta
sem casa dentro. Lar oco com míseros fios de luz cruzando teto, teias, veias,
velhas, as tias, as tias de Matias. Amália que tocava alfaia. Ondina das mãos
mágicas de alimentar e benzer. Isabel com voz de chuva no deserto.
Matias,
o que nunca mais voltou. Foi menino na bicicleta e um cão. Foi música de igreja
do Padre Zezinho e São Longuinho pra se achar. Foi Shanadu e Olívia Newton
John. Foi montão de bagagem; tudo que se podia precisar longe de casa. Foi
mundo pequeno fugido por valentia. Abandonado por covardia.
Matias,
o que se escapou de seis mãos de mulheres. Desde que teta de mãe secou. Desde
que, louca, fugiu com circo. As tias, cultivando cravos nas janelas, lavando
calçadas, ouvindo mentiras, desencontros que se fizeram desen-contos, manias de
Matias, escritor. Miúdo no meio da pandemia.
Matias,
mal dormido, o que quer voltar. Café coado, último dia do mês de março, salário
e soluços, um pra dentro e outro pra fora. Amália, Ondina e Isabel. Chaves de
abrir todas as portas, abrir todos os abris. Construir todas as casas com
chiado de panela de pressão, alho fritando e abraços. Os proibidos, agora.
Matias
chorou. Jurou junho caminhar se equilibrando em fio de pedra, ajudar menina a
subir em árvore, tomar banho de chuva, pegar carrinho de rolimã ainda
estacionado na alma. Encher páginas repletas de lua, sol e histórias. Ser outro
Matias, o que nunca esqueceu. O que retornou. O que retornará sempre.
Ilustração: Ângela Lago
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