20 outubro 2020

ESCOLINHA


 Maria Amélia Mano

        Merendeiro, senhorzinho da escolinha da vila abriu armário vazio de mantimentos. Cheio de sentimentos. Tomou café morno sozinho depois da hora do recreio. Crianças sem merenda ainda brincavam de pega-pega, de gira-gira. Teve dó da fome das crianças, de todas, que ainda sorriam, todas. Percebeu o sonho antigo perdido no meio da tarde. Assim, faltando duas-horas-e-quarenta-e-dois-minutos pra sair. 


Tempo demais pra esperar. No fundo, nunca esteve tão triste. No fundo, sentia falta da esperança colorida que era ela. Ela que ensinava a misturar guaches. Pegou no armário da sala de aula um caderno de aluno. Tanto quis um caderno igual, de folha grossa e branca. Espicaçou inteirinho. Tinha só uma galinha amarela na primeira página. Um balão colorido na segunda. 


Na parede da sala, um poema grudado, antigo. Folha de papel fino já sujo. Cocô de mosca e mofo. Coágulos, sangramentos de um ofício. Esboço efêmero de algo que fez sentido, um dia. Rasgou, arrancou fácil, fácil. Porque é fácil desfazer poesia quando é grudada assim, no descuido de uma fita dupla face. Nem leu. Não queria ser poeta, queria ser pintor.


E se foi pra sombra da quadra de esporte sem bola, sem rede, com raiva. Reboco caindo, cimento falhando, goteira no teto, arquibancada quebrada, vazia. Ali faria sua obra prima misturando rasgos de desenhos e poemas. Sobre uma pedra que marcava trave de gol, sentou e fez fogo sagrado, pensou nas lonas remendadas dos circos pobres, o assombro da extrema lucidez.


Não havia nada mais injusto do que a realidade, as colheitas minguadas do estio da infância e hoje, calos nos calcanhares, tropeços, espera pelo sábado só pela tv mostrando outro mundo. E dançou e cantou em volta da fogueira por ela, a professora de artes que se foi depois do tiroteio, assustada. Tão linda! Pensou entre lágrimas e labaredas. Assim, faltando duas-horas-e-trinta- e- um-minutos pra sair.  Saudade dela.

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