07 novembro 2020

À MARGEM DA IMAGEM


 Maria Emília Bottini

O documentário do diretor Evaldo Mocarzel (2001), contundente e necessário, provoca uma reflexão nos dias atuais do mundo em que vivemos, onde para alguns carro e motos de luxo e exclusivos, para outros nem transporte público, para uns mansões e para outros a lona ou mesmo os sacos plásticos nas ruas das grandes cidades, para uns escola particular com piscina e mensalidades de R$ 3000,00 e para outras a escola pública detonada e mal tratada. Esse é o mundo real que a alguns agrega e a outros segrega.

Este diretor deu voz e vez aos moradores de rua da cidade de São Paulo. Nós, por sua vez, acreditamos que nada têm a dizer e que nada sabem da vida, da política, das regras e normas de convivência em sociedade.

Mas será mesmo?

Quem vive à margem da vida não tem nada a dizer?

O que podemos observar com muita propriedade neste documentário é que o que eles têm a dizer poucos querem ouvir, a poucos importa. Ou alguns pobres loucos intelectuais, professores, assessores, estes estão interessados e podem provocar boas reflexões que, segundo Dupas, estariam mortas nos dias que vivemos.

Muitos são os depoimentos de pessoas que tinham suas vidas regradas, organizadas, homens e mulheres que exerciam suas profissões, até que um dia tudo muda. Existe um passado que tão somente se presentifica na rua, a busca pela sobrevivência é determinante, o mundo é tão somente aqui e agora, como tomar banho, onde dormir, como esconder o dinheiro para que não o roubem, como ter sexo, numa tentativa por vezes desesperada de manter minimamente a individualidade e a privacidade por vezes já perdida. No dia a dia, cada um aprende a sua maneira as leis da sobrevivência nas selvas de cimento.

Há uma religiosa que trabalha num abrigo e serve refeições a estas pessoas famélicas, seu nome e congregação não foram disponibilizados, seu depoimento arrasa, tira os neurônios fora de sua órbita. Ela afirma que temos uma sociedade doente e que é ilusão nossa pensar e acreditar que as coisas vão mudar; muito pelo contrário, a tendência é piorar e muito, no que particularmente concordo com ela.

Acrescenta que também seria ilusão acreditar que vamos conseguir tirar os moradores das ruas e que eles vão fazer parte da sociedade novamente e tudo ficará numa boa, serão aceitos, terão emprego, até mesmo porque eles não se adaptam mais a este modelo de sociedade, vivem à margem dela, alguns por muitos tempos. Ela é incisiva em afirmar que a sociedade tem que se adaptar a esta realidade, inclusive novos arquitetos, que sonham cidades sem eles.

Comenta também sobre o termo “acharque” usado pelo morador de rua ao contar uma história que comova as pessoas que o escutam, usa esse artifício muitas vezes no intuito de conseguir uma grana, uma refeição. Se estivesse nesta situação, não usaríamos o “acharque”?  Alguns, mesmo não estando na rua, se utilizam deste termo, não é mesmo?

No Brasil, há cerca de 192 milhões de habitantes, segundo o censo do IBGE, em números, há até 1,8 milhões de moradores de rua em todo o território brasileiro; ou seja, entre 0,6% à 1% são população de rua.

Como podemos ignorar tantos e deixá-los à margem não só da imagem, mas de vida mais digna. Assista ao documentário que lhe fará refletir e pensar sobre, se desejar.

 

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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