Maria Amélia Mano
texto publicado em: 28/10/14
Labucci escreveu Caminhar, uma revolução - livrinho pequeno que devorei nas
minhas viagens de ônibus de ida e volta ao trabalho. Entendo que o verdadeiro
caminhante é como o autor descreve, não caminha para chegar logo, mas para se
ter sentidos despertos, para contemplar o mundo encontrado, para se ter
experiência de vida. Para os apressados dias de hoje, conforme o livro, caminhar
é quase um ato de insubordinação, um ato revolucionário porque caminhar vai
contra a velocidade. E a pressa, essa eterna produtora de tensão, de doença, de
falta do olhar para a beleza da estrada é a ordem do dia.
O autor defende que as
coisas boas e importantes devem ser preparadas, atingidas, alcançadas a pé, para
que o tempo passe sua energia, para que as flores se abram como os pensamentos e
possamos ver o mover das pétalas, tanto quanto o balanço das palavras e das
ideias. Ainda diz que caminhar é um triplo movimento: não ter pressa, acolher o
mundo, a estrada e não nos esquecer de nós mesmos no caminho. Sim, estamos
presentes em nossos pés, nos fazendo humildes como todo caminhante. E o livro
lembra que a palavra humildade tem relação direta com o húmus, a terra...
Passos, rastros... As páginas lidas definem o andarilho, o nômade, o errante, a
rua, a estrada, a vereda, as buscas, os ires, os retornos, os detalhes, os
riscos, os cansaços, as pausas, os descansos, as perdas, os vazios, as
angústias, os encontros, as descobertas de quem opta em ter surpresas, habitar
asas e sentir o chão. Assim, penso e tento caminhar sem esquecer de mim, sem
esquecer do sol que seca as poças que, depois da chuva, refletem o céu, margeiam
meus passos em curva e dança esperançosa e curiosa, buscando o mistério de cada
dia.
Saio, na manhã, em mais uma caminhada leve, com destino e hora marcados. Na
minha frente um casal de mãos dadas. Ela, com o uniforme azul do SAMU escrito
técnica de enfermagem. Ele com um uniforme camuflado que parecia ser de algum
batalhão do exército. Ambos uniformizados e, de alguma forma, preparados para
uma espécie de guerra. Sim, eles convivem e convivemos todos com a violência
cotidiana das ruas que passa por nós nem sempre percebida, às vezes banalizada,
mais cruel assim. Mas eles seguem pelas ruas de mãos dadas.
Observo a
insistência do passo a dois, a conversa solta. Torço para que as mãos dadas
sejam um antídoto para a desumanização frente ao dia a dia, que o esforço dos
dois em permanecerem juntos, seja também expandido e contamine suas ações. Que
as ações sejam impregnadas dessa luta pela ternura, apesar dos uniformes duros.
Que não sejamos dois seres tão separados, o de casa e o do trabalho, o das mãos
dadas e o da palavra de desalento, da atitude que machuca e mata. Que a gente
possa ser o melhor e levar o melhor do que somos para os espaços, sejam eles os
mais difíceis de serem vividos.
O casal some em uma esquina e sigo
esperançosa, caminhando. Penso, ainda, antes da eleição, nos nossos então
candidatos a governantes. Na batalha de palavras que trocam e saem, violentas,
com mais facilidade que a necessidade de provar o quanto são dignos. Nas redes
sociais, a briga continuava, a intolerância em relação ao diferente, ao
contrário. No território onde trabalho, a luta pelo poder do tráfico faz vítimas
semanais entre os jovens que se vão, entre as mães que sofrem, entre a
comunidade que dorme sobressaltada com o ruído das balas na madrugada...
Violências de ontem e hoje. Tempo que passa e passou. Caminho e a eleição
termina e a semana começa na busca pela arte e pelo sorriso. Música que anima
meu andar, andar. Encontro e me encontro na embolada do poeta-palhaço andarilho
que assobia, percorrendo ruas de pedra. Alceu Valença em rima e rota, rumo,
tempo em frente e verso, avesso e direito. A beleza nas palavras que,
desarrumadas, arrumam as ideias e o coração, porque ditas em canção e caminhada,
refazem o andar como um “grito aflito na rua do sossego” de “um anjo que varre a
cidade”.
Varrendo a cidade, assobio torcendo pelo casal de farda. Canto
esperando por dias menos zangados, menos tristes, mais ternos. Caminho, em
revolução e resistência esperançosa, com mais respeito aos errantes que observam
os ventos, tormentas e brisas. Sigo, sem pressa, acolhendo o mundo em volta e o
mundo em mim. Sei que as pedras do chão tanto quanto a vida, se faz e se sente,
na mágica aventura de persistir, de prosseguir, enquanto pés que se descalçam,
enquanto mãos que se desarmam, acarinham, semeiam e colhem flores brancas com
cheiro de poesia andarilha de paz.
https://www.youtube.com/watch?v=ueiB5NGD7Qk
https://www.youtube.com/watch?v=ArVskTctdfw
https://www.youtube.com/watch?v=Fz2NML0YXPA
https://www.youtube.com/watch?v=dV7K8MVWh4E
https://www.youtube.com/watch?v=7jFxgxtHDGs
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