As notificações epidemiológicas no SUS são guardam muitos desafios... se é um porre realizá-las no cotidiano dos serviços - parar tudo para concentrar-se e preencher documentos – os epidemiologistas e os gestores não vivem sem elas... ! É mandado constitucional que o SUS trabalhe a partir da epidemiologia... Agora, por exemplo, em tempos de COVID-19 tem até plantão da Rede Globo, com musiquinha assustadora e tudo para anunciar os números e as tendências da mortalidade da doença...
E, na vigilância epidemiológica... ainnnnn tem a ficha de notificação. Sem ela a coisa não anda... não tem dados... Aliás, quanto mais se notifica mais a realidade aparece... então tem até um povo que é contra a notificação prá realidade ficar mais bonita.
A distinta ficha, quase um ser a ser respeitado é longa, dá um trabalhão danado, precisa de tempo prá preencher, tem perguntas constrangedoras, dado que é preciso correr atrás... ou seja, não romantizemos o trabalhar na saúde...
Então, sensibilizar as gentes para notificar é daquelas ações que só pessoas teimosas como a Sueli e a Susana realizam com maestria. Elas ficam dias e noites na cabeça do povo prá fazer os preenchimentos das notificações no SINAN e conseguem fazer com que Campo Grande e Mato Grosso do Sul tenha muitas doenças e agravos não transmissíveis... as DANTs (teria esse nome alguma coisa a ver com o inferno de Dante? Pensando bem, acho que tem...)
Quanto mais se notifica mais a realidade fica evidenciada... e, por isso, parece que é pior. Então, notificar também significa preparar-se para o tranco dos desconhecedores da realidade que, incompreendendo o mundo do SUS (por alienação ou por maldade mesmo!) começam a criticar as aparências.
Ainda lembro que quando tínhamos uma grande campanha de denúncia de exploração sexual de crianças e adolescentes no Disque 100, Corumbá chegou a ser o pior número do país em incidência e aí os jornais de outros estados e outros países queriam saber o que havia na cidade que tanta violência sexual tinha... e era duro explicar prá jornalistas e políticos despreparados que lá a coisa da sensibilização e da denúncia é que estava funcionando...
Quando as doenças são transmissíveis parece que a notificação fica mais perto da realidade. E também tem a pressão da comunidade, da imprensa prá saber os números e os riscos que todes correm. E, historicamente, as doenças transmissíveis foram mais valoradas no processo saúde-doença... as não transmissíveis, essas necessitam permanente trabalho para evidenciar a importância...
As notificações das Doenças e agravos não transmissíveis (DANTs) – especialmente acidentes e violências -, embora tenha a ficha cheinha de X a serem feitos têm o crivo da sensibilidade e disponibilidade dos trabalhadores em saúde para a sua realização. Dentre todas as dificuldades que o SUS enfrenta para emergir a realidade em números está a culpabilização das vítimas por parte da sociedade que, nesse caso, está representada pelos trabalhadores e trabalhadoras em saúde. E ainda tem o medo de ter que ir depor nas polícias, nos processos judiciais... ou seja, a trabalheira e a responsabilidade de ser um agente do Estado brasileiro. Aliás, muitos trabalhadores nem tem a consciência que são agentes públicos do Estado... mas isso é outra prosa prá mais de três cachaças...
É muito conversê para justificar a não notificação... e, eu e a Mabé tínhamos a pauta da epidemiologia dos acidentes e doenças do trabalho numa especialização em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana. Conversamos em como fazer algo que sensibilizasse a turma... e, enfim, poderiam iniciar a aventura de notificar as desgraceiras que aviltam os trabalhadores e as trabalhadoras no que se refere aos acidentes e doenças do trabalho. Nossa condição de tutoras pela FIOCRUZ nos garantia autonomia para pensar na didática do conteúdo curricular.
Willian, Hermano, Rita, Beth... todos confiavam na nossa capacidade criativa e eram muito abertos às conversas que fazíamos. Em um dado momento lembramos também que os trabalhadores e as trabalhadoras em saúde sofrem no processo de notificação, não somente pela carga de trabalho, sobretudo porque ao registrar ponto a ponto da realidade das doenças e agravos vão revivendo junto com os usuários ou seus familiares, todos os acontecimentos que originaram as violências. Mas isso não pode ser justificativa prá não realizar o correto preenchimento da tal ficha de notificação compulsória. O agente do Estado tem obrigações...
Eita que o discurso estava na ponta da língua!!!! E, depois de muita conversa entre nós e nossos orientadores decidimos: vamos começar com sensibilização, seguido de preenchimento das fichas em pares e depois conversa sobre sentimentos e operacionalização das notificações no cotidiano. A delícia de organizar o movimento de aprendizagem é sempre um prazer imenso e, como diz o Paulinho, é papel dos educadores... então... dá-lhe poder! Nós ríamos de nervoso, mas sabíamos do poder das educadoras no planejamento pedagógico...
Quando são apaixonadas pelo que fazem nem se controlam nas horas de trabalho. Esse vira vício. Saímos da Escola de Saúde, fomos pro Park’s, pedimos a matula pantaneira e cerveja geladíssima. Sendo a Saúde do Trabalhador a área que mais libera e exige de seus militantes as análises de capital X trabalho, as tutoras alegremente se puseram a voar pela América Latina e discutir músicas, autores e tudo. Pulsa o sangue de se sentir construtoras da história... oh veia marxista da porra!
Chegamos fácil na Mercedes Sosa, no León Gieco e “Solo le pido a Dios” perfeito!!!!!
Solo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que la reseca muerte no me encuentre
Vacía y sola sin haber hecho lo suficiente
Salvamos a letra em espanhol e em português. Cantamos as duas e em duas ao som do riacho ao Parque Itanhangá e do olhar dos garçons que já conhecia o tipo de público que frequentava o bar... e ainda pedimos pro Gustavo cantar prá nós!. Freguesas assíduas podiam música! Lembramos da cantoria em português da Beth Carvalho e a incluímos. Separamos os versos prá fazer uma batalha poética e o trabalho de integração do grupo para que pudessem preparar-se para fazer uma boa entrevista, estimuladas a ouvir a história da outra, olhar nos olhos, acolher as dores... enfim... iríamos arrasar!
E cantarolávamos noite adentro...
Solo le pido a Dios
Que lo injusto no me sea indiferente
Que no me abofeteen la otra mejilla
Después que una garra me arañe esta suerte
Chegamos mais cedo que as estudantes, preparamos a música, as cópias e fizemos a recepção de todas as 24 estudantes na porta. A certeza que a manhã seria maravilhosa e que nossa história latina estaria na atividade nos enchia de alegria, exultamento... uhuhuh... o ápice da criatividade e do compromisso com a classe trabalhadora!
Colocamos o tema no quadro, falamos dos movimentos pedagógicos que iam ser realizados e distribuímos a letra da música. Sorteamos as estrofes e pedimos que reunissem os grupos da mesma estrofe e preparassem a apresentação. Além de declamarem a poesia também deveriam encontrar uma substituição para “Eu só peço a Deus” para outras “forças” que temos que pedir apoio... tudo arrasante.
Dançamos ao som da música e os grupos se formaram (estávamos tão empolgadas que nem percebemos que ninguém cantava!). Não havia passado um minuto e começamos a ser chamadas nos grupos. A solicitação de apoio era a mesma em todos eles: não sabiam ler e compreender o espanhol. Entreolhamos (Mabé e eu combinávamos só olhando) e propusemos em voz alta que então fizessem em português. Mesmo morando em Mato Grosso do Sul, cerquita de la américa hispânica, hablante del español, somente a pessoa de Ponta Porã entendia o dito idioma. Viramos a folha e passamos a fazer tudo em português...
Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucado brutalmente
Ao iniciarem as declamações ficamos novamente em suspenso: as substituições de “Eu só peço a Deus” tinham vindo com “Eu só peço a Maria”, “Eu só peço a Jesus”... somente eu e Mabé tínhamos substituído por “Eu só peço às amigas”, “Eu só peço aos colegas de trabalho”... então... bem... então... sigamos!
Cantamos com Beth Carvalho em português no final das estrofes
Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda pobre inocência desta gente
É um monstro grande e pisa forte
Toda pobre inocência desta gente
Eu só peço a Deus
Que a mentira não me seja indiferente
Se um só traidor tem mais poder que um povo
Que este povo não esqueça facilmente
Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Sem ter que fugir…
Finalizamos a manhã e à tarde entramos com a temática do trabalho prescrito e trabalho real... pronto! O resultado do movimento de aprendizagem que fizemos era coisa prás tutoras fazerem no buteco... com cachaça e cerveja. A tarde ia ser pesada e não era análise prá pouco tempo. Rimos de nós mesmas durante o entardecer preparando o outro dia... Dia de feira e a turma foi em peso comer sobá e espetinho. Assim, não discutimos mais os acontecimentos pedagógicos da manhã.
No outro dia, Mayara vinda lá do profundo Mato Grosso do Sul, quase esquina com o Goiás chegou animadíssima!
- Tutoras, nós vimos que vocês ficaram decepcionadas porque a gente não sabia nada do León Gieco, da Mercedes Sosa... e nem do espanhol. Então, nós que estamos lá no alojamento ficamos tentando procurar a música e encontramos... olha aqui! (Abriu o computador e colocou “Solo le pido a Dios”) A gente bem que lembrou que já tinha ouvido a música... E a Shakira, né? Ela é ótima!!!!!! Maior sucesso no mundo inteiro!
Eu ainda cantarolei com a Shakira... não sabia o que falar. Mabé parabenizou pela iniciativa do grupo que estava no alojamento da ESP, da persistência em ir em busca da informação... e a gente não se olhava. Nós de Mercedes Sosa e León e as especializandas de Shakira...
Daí lembrei que ela falou que a gente ficou decepcionada e respondi:
- Olha, tenho certeza que a decepção não foi com vocês, não... foi mesmo porque eu e a Mabé estamos desconectadas com os novos cantantes da resistência latino-americana...
- Profa, fica tranquila... é que vocês trabalham muito, não tem tempo prá curtir mais, dançar...
E a Mabé:
- É... deve ser isso mesmo!
E eu cantando à noite na cachaçaria queria recompor... León não sabia nada de nós e dos caminhos da música dele... ríamos, ficávamos sérias, depois ríamos de novo... E aí fomos escrevendo no guardanapo... rabiscando, reescrevendo até dar forma...
Eu só peço, amigas
Que não me deixem indiferente...
Nem me abandonem na luta
Contra toda a alienaçãoooooo
E me deem a alegria
De seguir a vida de professora
No dia-a-dia sem desistir....
Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.
Tô me lembrando do episódio que usamos essa música pra sensibilizar uma plenária ou seminário do Sinpaf para o tema Saúde do Trabalhador cantada no acolhimento. Cantamos em português com a letra no telão pra caso das pessoas quererem acompahar. Também parecia desconhecida para o seleto público de sindicalistas. Eu só sei que chorei cantando porque lembrava dos trabalhadores aviltados em sua dignidade nos locais de trabalho. E você estava lá, lembra? Pra mim essa música é um hino de resistência.Só emoção!
ResponderExcluirtemos muitas histórias, né? e sempre tem choro e risada de nada! as plenárias do Sinpaf na gestão de vocês era um primor de luta!
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