Maria Amélia Mano
O que estraga a felicidade é o medoClarice Lispector
Eu que desprezava cozinha, campainhas e olhos mágicos. Deixava portas escancaradas. Abria casa para estranhos, entranhas. Achava que precisava separar fruto de cacho, desmembrar gomos, negociar sobrevivência, sangrar inteira, insone, solitária, sempre, saber tudo de mim, me delatar, me dilacerar, me despencar, me explicar com ponta de punhal e lasca de vidro. Minha escrita era feita de pimenta, gás lacrimogêneo, urgência ácida, súplica e sobressalto.
No fundo, fuga e farsa. Tu sabes, tinha rédeas de mim. Quando vinham tropeços, tremores, viajava com sapatos de sonhos, saídas e saudades. Caminhava, cravando cajado em chão cancioneiro de calos, cacos, caos e cansaços. Partia e me partia em muitas sem cultivar raivas, mágoas, crises, culpas. Valorizava vazios intensos, ausências necessárias para (me) reconstituir em importâncias e essências. Em trilhas e histórias de músicos de esquina. Sem saber salpicar e condimentar dias.
E veio aventura verdadeira. Teus temperos, toque e tocaia bem feita, rápida e rasteira, rumo, raio que não me partiu como antes, mas me fez inteira, seio, ninho em nevoeiro, abrigo de pássaro que canta no meu ouvido teu nome baixinho. Em banho-maria, água e vida corrente, assustada, resisti na corda que me escapava. Temi cravo, canela, colo, calma, mais íntima que era de travessias e transbordes, fios desencapados, chama, choque, faísca, fúria, fervura e fome.
Oceanos evaporaram, se foi a ira das ondas, a chuva turbulenta, o assombro das tempestades, o borbulhar das caldeiras. Me rendi, aos poucos, a caldos, caldas, chás, aromas e especiarias. Aprendi a cuidar do murmúrio das águas, braços de margens, manhãs púrpuras livres e largas e me fazer mais lenta e limpa e leve, clara em neve. Minhas mãos não se fecharam em segredos e se entregaram. Assim, sigo te tocando a pele, te sonhando sumo e sabor.
Ainda tenho receio quando perco ponto, mas tenho felicidade imensa quando acerto textura e gosto, raspa de limão, doçura, agridoce. Fecho os olhos pra sentir melhor na ponta da língua e me visto de estampado, de descampado. Saia rodada, amada, amarela com flores brancas e desabrochadas, bordadas, beijadas, carameladas aos poucos em fogo lento, sem receita, sem me saber, sem me explicar e viver cada dia pra me permitir. Pra nos permitir.
Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea: Marias e Clarices, organizada por Rubem Penz
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