Lá no fundo de casa, entre os pés de laranja e limão tinha o pé de carambola. Gostar da fruta eu não gostava muito, mas do doce que a tia Natalina fazia era um sabor incrível. Era doce azedo e o desenho das fetas pequenininhas era no formato de estrela.
Pois era embaixo dessa árvore que fornecia o sabor que se
salivava sem querer, que também se matavam porco, cabrito, carneiro. Galinha se
matava nos fundos da cozinha. Vaca se carneava no sítio. À sombra das carambolas,
perto do chiqueiro e do galinheiro que também se pendurava uma garrafa de
cachaça, o tacho prá fritar a carne e a banha e se mantinha, quase que
permanente, o fogo com as lenhas secas. E tinha lá um tambor grande cheinho de
água prá ir higienizando tudo, inclusive a tripa do porco prá depois fazer a
linguiça...
Era uma trabalheira danada pros adultos e, para as crianças
uma aventura de grande de conhecimento interno dos animais... papai e vô Dale
iam estripando os bichos e mostrando: o coração se come, o fígado se come, a
bílis joga fora rápido senão estraga toda a carne... e o rabo, bem o rabo e a
orelha se cozinha no feijão. Nos dias de matar bichos médios geralmente vinha
alguém ajudar – um homem, evidente! As mulheres da casa – mamãe e volinha – davam
conta do restante. Geralmente até o dia seguinte ainda tinham trabalho,
especialmente guardar a carne frita nas latas de gordura.
Quando chegava a fase de separar as partes então a conversa
era outra: suã prás latas, pernil pra um, costela prá outro... geralmente era
nessa hora que os homi perguntavam prás mulheres (no caso que eu lembro...)
- Pro Dr. Nelson, vai a costelinha ou o pernil?
A naturalidade com que isso ocorria indicava (nesse meu
estágio de lembrança) que o pagamento pelos serviços médicos ocorria de
diversas formas. E, uma delas era em produtos. Lembro-me de ser atendida pela
Dra. Alice, esposa do Dr. Nelson, mas não me lembro de perguntarem como iriam
pagar a Dra. Alice. O machismo é uma coisa terrível – esconde até a mulher
médica sob o nome do homem médico... humpt
Mas uma coisa eu sei: lá em casa se pagava os médicos com
dinheiro e complementava-se com produtos. O saco de feijão, um quarto de vaca
no fim de ano, costelinha ou pernil de porco várias vezes...
A foto dessa história foi enviada pelo Antonino Rebeque. A acho
que o distinto é dos Rebeques lá do Lote dos Padres, uma fazenda depois de
Montese e antes de Piraporã. Então... ele
guarda muitas informações em retratos lá de Itaporã. Falou que o
Hospital era do Dr. Nelson, mas isso eu já não sei... pensei que era das
freiras porque só lembro mesmo é delas correndo de um lado pro outro, no prédio
de dois andares cinza com bege. Só lembro que quando morava em Itaporã só podia
ver por fora... e o que será que tinha lá dentro, minhas deusas??????????
Tinha outras formas de pagamentos pros casos de doença. E,
uma delas era exclusivamente em produtos. Algumas pessoas do sítio pagavam com
produtos. Lembro-me da ComáFrancisca. Acho
que era uma vez ou duas por semana, a ComáFrancisca passava lá em casa logo de
manhã prá trazer verduras, queijo e leite. Naquelas ocasiões tinha já separado
em uma cesta o que ia deixar na casa dos médicos, ou seja, fazia um pagamento quase
que permanente para um atendimento realizado. No caso da Comadre, ela tinha uma
filha meio fraquinha dos pulmões e, vez por outra, ia na Dra. Alice ou no Dr.
Nelson, não sei... O abastecimento da casa dos médicos era certeiro.
Teve a vez que um parente – guri terrível de arteiro - tinha
os ouvidos inflamados com berne. Era coisa comum, mas o berne dele ficou feio e
inchou o rosto. Teve que ir no hospital prá tirar o bicho e depois ficou lá em
casa fazendo compressa (não lembro de quê, mas era uma panaiada danada). Lembro-me
da minha tia cuidando o dia inteiro e fervendo tudo que usava nele. Era
secreção prá todo lado depois que o bicho saiu do ouvido. O pagamento no hospital foi um ajuntamento de
parentes prá pagar no sufoco, tudo de uma vez. Depois meu tio trabalhou duro e
foi devolvendo a cada um. Mas o médico, esse foi pago em separado e foi um
porco inteiro (limpo, esquartejado e com partes nas latas de banha).
Meu primo e seu berne tinham ficado dispendioso (adorava essa
palavra falada pelo meu pai). Se tivesse deixado tirar com toucinho prá puxar o bicho não tinha custado os olhos da cara! (kkkkk e onde iam ser os
olhos se não fossem da cara???? ).
E lá vem a Federici de novo...
O serviço do médico tinha valor e preço. O da mulherada, só
valor. O agradecimento ia pros médicos (as médicas não lembro!) e prás freiras
que tinham ensinado os cuidados. O cuidado que as mulheres da família dispensaram
era coisa de “amor de mãe” e às vezes nem agradecimento tinham...
E, os homens? ah, os homens da família... o eterno obrigado
ao meu pai que tinha ido catar um dinheirim aqui outro acolá... e o meu tio que
tinha trabalhado duro prá devolver depois... exaltação ao trabalho e
honestidade dos homens.
E as mulheres?
Bem, as mulheres mantêm o mundo...
Estela Márcia Rondina Scandola, 59 anos,
mulherecendo em tantas mulheres que mulherecem em mim. Escreve aos domingos
como convidada.
Que texto lindo, Estela. Bora fazer um vídeo?
ResponderExcluirNa Paraíba e em Pernambuco do Sertão ao Litoral, era assim mesmo que se fazia a remuneração do doutor. Hoje, aos 72 anos de idade, revivo cenas parecidas com esse seu relato de vivências infantis, no coração do Brasil - o Centro Oeste. Lá, cá e acolá, a História da Saúde no Brasil se faz na síntese das múltiplas determinações. Recordar é viver!🌹👏👏👏👏👏❤️
ResponderExcluirMais uma deliciosa viagem!
ResponderExcluir😁