Eu acho que tinha de 6 para 7 anos... fato é que as lembranças só vêm em flashes, mas de ir levar o sequilho prá Dona Nena lembro bem. Só sei que era um sábado, dia que a mamãe fazia doce e, pelas circunstâncias, já devia ser à tarde porque tudo já estava embalado na lata de alumínio. Sequilhos precisam ficar em latas e não se deve balangar nem bater senão esfarelam.
Dona Nena tinha ficado no quarto da frente da casa da vovozinha um tempão e depois tinha vindo avisar que a menina tinha nascido. E eu me perguntava: o que ela tinha feito lá? Pensei: quando eu chegar lá na casa dela, vou olhar bem e ver o que ela tem que quando fica um tempão no quarto logo vem uma menina bebê... vou olhar.
Lá fui eu com minha monareta pros lados do campo de futebol de Itaporã. Não lembro direito, mas mamãe colocou bastannnnnte sequilhos na lata, depois envolveu em pano de prato dando nós em cima (ficava parecendo orelhas de gato o que sobrava das pontas). E ainda colocou em um bornal (quando já era adulta é que fiquei sabendo que podia ser embornal) imenso e amarrou as alças. Aí amarrou na garupa da bicicleta com faixas de borracha que o Caroço tinha feito prá mim lá na serraria. Sim, carregar sequilhos era só para os cuidadosos.
- Mamãe, vou esperar o Bitô ou o Otô?
- Nada disso! Não quero brincadeira prá ir levar os sequilhos. Quero você indo devagar, desviando dos buracos, sem trupicar nas pedras e nem cair na areia. É ir até lá sem quebrar um sequilho!
Ainnnnn, isso era mesmo a dificuldade. Andar de bicicleta feito estalta! Mas fui e levei tudo direitinho que não me lembro de ter havido reclamação... Mas sei que minha mãe mandou perguntar prá Dona Nena se havia chegado a encomenda e sem quebradeira.
Pior, quem me atendeu na casa da Dona Nena foi outra pessoa: adeus eu olhar prá ela prá saber o que tinha de diferente. A curiosidade de criança é um trem fabuloso. Ao mesmo tempo em que se quer saber das coisas também se cria muita imaginação. Vai lá saber o que é verdade ou não das lembranças... só sei que lembro, como diria o Chicó!
Já havia passado uns 7 dias desde que a Josiane havia nascido. Tinha sido uma experiência de curiosidade extrema prá mim. O que será que acontecia naquele quarto? Na volta, sem trazer a lata, mas com bornal e pano de prato limpíssimo, um tom de frustração tomava conta...
- Mamãe, o que a Dona Nena faz que a Josiane nasceu?
- Ela é parteira.
- Hum...
-Vai mexendo a nova receita de sequilho... ainda falta prá casa da Vó Alzira. Vai lá: uma lata de leite moça, uma caixa de maizena e uma lata cheia de nata. Mistura bem aí na bacia.
Melequei os dados da mão esquerda e fui juntando as coisas com a mão direita. Ia colocando mais maizena até ficar em ponto de fazer umas bolinhas. Depois dispunha “simetricamente” na assadeira e ia amassando com o garfo em cima. Até hoje acho que aquelas experiências docísticas com minha mãe tinham um quê de desenvolver conhecimento de química, coordenação motora, controle emocional, solidariedade, partilha... é... sequilhos fazem aprender coisas demais da conta...
- Mamãe, quando a Dona Nena vai na casa sempre nasce nenê?
- Só quando a mulher está grávida e o nenê está pronto prá nascer. Mexe direito a massa senão a manteiga não espalha... Já untou a assadeira?
- Untei... E quem sabe que dia vai nascer o nenê?
- A mãe do nenê... daí ela avisa alguém da casa e vão buscar a Dona Nena.
- E porque a senhora mandou sequilhos prá Dona Nena?
- Porque ela foi uma boa parteira. Ajudou bastante a tia Dirley.
- E a gente vai sempre levar sequilhos prá ela?
- A gente sempre agradece a parteira. E agora termina a segunda travessa que já tirei a fornada anterior.
Eu olhei prá fornada que saía e pensei: lá vou eu de novo levar sequilhos! Por que os guris não aparecem pra esse serviço?
Mas o que será que a Dona Nena fazia prá fazer chegar os nenês ficava sempre pairando na minha cabeça. E tinha outra coisa: a parteira não era da família, mas entrava na distribuição de sequilhos, não se pagava com dinheiro mas se agradecia sempre! Mamãe cortava o cabelo da Dona Nena e não cobrava. Acho que era uma forma de paga. Cada uma dava o que tinha de saber. Vixeeeee, isso nunca que ia dar certo no ca-pe-ta-lis-mo! Não circula dinheiro... deve ser por isso que os partos foram todos pros hospitais e tem o tal custo que o SUS remunera e que os médicos acham vergonhoso... ainda bem que tem as enfermeiras parteiras, uhuhuhuhu
E do que viviam as parteiras? Se o parto não era um procedimento com preço mas um cuidado de valor, como é que ela iam na venda comprar óleo de amendoim prá salada ou o leite moça pro sequilho?
Vixe, voltei ao pensamento racionalizado! Daqui a pouco vou querer que a Silvia Federici converse com a minha mãe (que já está do outro lado da energia vital!) prá responder sobre minhas inquietações feministas sobre as parteiras.
O fato é que fiquei aqui matutando: a parteira é um dos elos do trabalho reprodutivo não remunerado. A romantização do valor do trabalho que, neste caso é para preservação e reprodução da espécie, nubla o valor econômico que ele contém e nega o preço necessário para remunerar a força de trabalho!
KKKKKK era prá ser um texto leve e já ficou pesado e em pleno aniversário da Perla que só quer coisas leves prá vida... oh trem doido esse da consciência assaltar a emoção!
Mas ainda vou pensar mais um cadinho sobre o que acontecia dentro do quarto de parto em que minha mãe e a vovozinha entravam e saíam. Eu não podia ficar na sala, só nos fundos da casa ali da rua 10 de dezembro e, de vez ou outra alguém aparecia para pegar água quente na cozinha... E aquele monte de toalhas de algodão branquinhas que passaram a semana lavando, fervendo e passando a ferro?
Quantos serviços sem preço existiam? Será que o mundo sabe sobre processo e carga de trabalho das parteiras? Como é que a gente explica o valor da parteira que não tinha preço?
O trabalho das mulheres... ah, o cuidado... eram mulheres cuidando de outra mulher que ia ter outra mulher... era uma mulherice danada repleta de valor.
Estela Márcia Rondina Scandola, 59 anos,
mulherecendo em tantas mulheres que mulherecem em mim. Escreve aos domingos como convidada.
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