06 fevereiro 2022

AQUI NO BECO DA LIBERDADE NÃO TEM INDIGENTE, NÃO!


 

Em meados dos anos de 1980, depois de terminar a faculdade, fui morar naquilo que chamávamos de inserção. Consistia em morar lá aonde se iria fazer a militância, construir o mundo novo, enfrentar a ditadura pela organização de base... Era um tempo de cantar “Teu sonho não acabou”

Hoje, a minha pele já não tem cor
Vivo a minha vida seja onde for
Hoje, entrei na dança e não vou sair
Vem, eu sou criança, não sei fingir

Pois eu saí de morar no Edifício Dona Neta, 20º. andar, ali na Afonso Pena e fui morar no Conjunto Estrela do Sul, rua Coroação de Pompeia, 324. Em 1984 já estava lá. A primeira inserção foi no grupo de jovens da comunidade N. Sra. Auxiliadora, no Jardim Imperial. Junto a essa capela ficava o Beco da Liberdade e outros três núcleos de favelas, cuja denominação dada pela Igreja era de comunidades. Favela era porque os terrenos não eram regularizados, mas a maior característica mesmo é que as casas eram feitas de muitos materiais diferentes como madeiras, lonas, plásticos, papelões e tudo o mais que se encontrasse para fazer paredes e chãos.

E, no Beco da Liberdade tinha a Dona Áurea, liderança inconteste. Nordestina da gota serena que, quando a gente chegava, já colocava nas condições: tá vindo prá quê? Vai ajudar em quê? E ia apresentando uma porção de gentes e núcleos familiares, quase todo mundo com um parentesco com ela...

Ali tinha um núcleo de CEBs – Comunidades Eclesiais de Base e, confesso que não me lembro como era a miscelânea, era ali também que o MOPS – Movimento Popular de Saúde trabalhava. Então não sei direito se era CEBs ou MOPS ou os dois, mas tínhamos uma prática de organizar a compra coletiva. O trabalho consistia em organizar as mulheres (sempre elas) para juntar os dinheirinhos daqui e dali e comprar o básico: arroz, feijão, óleo, açúcar, café. Às vezes incluía-se o charque. Conseguíamos um preço mais baixo em alguma venda a atacado e isso ia barateando a vida e também agregava a mulherada.

Lá, onde eu estive, o sonho acabou
Cá, onde eu te encontro, só começou
Lá ,colhi uma estrela pra te trazer
Bebe o brilho dela até entender

Em um dos encontros para organizar a compra coletiva, uma das noras (já não lembro o nome) falou que estava com o pé destroncado há uma semana e não conseguia ser atendida na Santa Casa. O pé parecia uma bola e das grandes... com a pele brilhante denunciando que a coisa estava feia. Dita, nossa coordenadora do MOPS logo falou: mas isso não pode! Não é possível que um ser humano tenha que ficar sofrendo assim! Estela, você não consegue fazer alguma coisa falando com a Assistente Social da Santa Casa?

Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você

Da militância direto prá prática profissional!!!! Uhuhuhuhuhhuh. Isso me deixava mega entusiasmada com a profissão. Saí dali ensimesmada com a carteirinha de assistente social... ah, eu ia carteirar lá na Santa Casa e ia conseguir o atendimento da nora. Às sete da noite retornei ao Beco e fui dar a boa notícia. Podia ir na madrugada, falar com a assistente social do hospital e ela ia ser atendida. Eu me senti a cara do poder. Aos 22 anos muitas de nós pensamos que somos a própria transformação do mundo! Eu tinha conseguido o atendimento utilizando meu registro profissional. Fiz uma cartinha com papel carbono, assinei, carimbei com o número do Conselho e fui prá casa. Que a-le-gri-aaaaaaaa

Dois dias depois, chegando da compra coletiva e começando a organizar os fardos de comida, quando vi a nora da D. Áurea e logo perguntei:

- mulherrrrrr, como foi na Santa Casa?

- deu quase tudo certo!

- foi atendida?

- Fui. Mas tem uma coisa que não quero mais, não!

- Hummmm, trataram você mal?

- Escreveram que eu era indigente e eu não sou, não. Deussssss me livreeeeeeeee!!!!!!

Aquela mulher franzina e peituda, com o pé e parte da perna engessados jogava os braços prá frente e prá cima com uma força que fiquei parada. Só o cérebro cantarolava...

Que eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você

- Quem escreveu que você é indigente?

- Quem escreveu, não sei. ´Tava no envelope.

- Que envelope?

- Que ficava pendurado no pé da maca lá no pronto-socorro.

Calei. Era o registro da des-humanidade. Eu havia aprendido que o atendimento na saúde tinha os indigentes, mas eu não tinha pensado sobre escrever isso, nem tampouco que alguém poderia ser carimbado. Eu sempre cantarolava prá dentro em tempos de nervoso... e o Taiguara me ajudava com as letras... Nós já tínhamos dois LPs dele na casa e isso era um mega privilégio. Alguns parças iam em casa prá ouvir... era como fazer um programa. Então, cantar prá dentro era uma prática pro cérebro acalmar e raciocinar.

A pessoa “indigna de ser gente” como registra a Gorette é carimbada na sua condição. Pior é procurar no dicionário e encontrar que indigente é aquele desprovido de condições, incapaz do próprio sustento, miserável, mendigo... impunha-se à pessoa a sua desvalia. O sistema que que indignava as pessoas ficava invisibilizado... Ser indigna de ser gente era “culpa” dela mesma. Por isso o grito da nora foi tão estralante na minha consciência e na de muitas. Quem viveu o período pré-SUS e tinha sangue nas veias lembra... sofre... e cantarola

Só feche seu livro quem já aprendeu
Só peça outro amor quem já deu do seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz

Ao carimbar indigente em um envelope (muitos já vinham impressos em vermelho) podia não significar um cuidado menos qualificado pelos trabalhadores da saúde, mas o atendimento tornava-se um ato da esfera da caridade. Na minha tenra idade eu nunca tinha sido chamada de indigente... talvez por isso não tinha me tocado tão fundo a realidade que vivi no Beco.

O direito ao atendimento às dores não existia para os indigentes. Era o favor realizado pelas “obras da caridade”. E, já sabemos... a caridade naqueles casos não tinham a ver com a compreensão da Dita quando estava nos encontros das CEBs, da revolução solidária... Não! A caridade era um conjunto de atitudes, instituições e programas que visavam atender os pobres e mantê-los na pobreza, inclusive agradecidos pela caridade.

Sim, no Beco da Liberdade as pessoas não eram indigentes e elas sabiam e o alvorecer da Constituinte já estava a caminho. Era 1984 e a gente foi em bando gritar Diretas Já. E, na esquina da 14 de julho com a Afonso Pena não tinha indigentes. Só tinha mesmo gentes que se constituíam como sujeitas de direitos.

Os envelopes das beneficências, das santas, daqueles que clamam deus nos impressos... esses perduraram por muito tempo até depois da Constituição de 1988 e do SUS. Pelo menos agora tem um povo aí que denuncia...

Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você

Eu preciso, eu preciso de você
Nós precisamos, precisamos sim
Você de mim, eu de você

 Mas é bom que a gente não se esqueça do que eram os indigentes, ou melhor, as indigentes... E que a gente siga cantando enquanto denunciamos... agora já sem ser em silêncio! É possível um rio de vozes com ele.

 


Estela Márcia Rondina Scandola, 59 anos, mulherecendo em tantas mulheres que mulherecem em mim. Escreve aos domingos como convidada.

Um comentário:

  1. Direitos, sim! Caridade é paliativo, remendo, emergência social com data marcada para terminar e que serve para diminuir culpas de quem patrocina e, também, serve de moeda de troca de votos para a reprodução do clientelismo! Lutemos por direitos!🌹

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