Maria Amélia Mano
... a frivolidade se manifesta ao dar importância às espumas da vida
Clarice Lispector
Hoje, eles me deglutem com azia e indigestão. Eu e meus colares de contas e sementes, meus versos que machucam, meus deuses e totens, minhas promessas, minhas antigas canções de trabalho, tristezas absolutas e ausências. Agora, sou excessos, extremos, o sempre desejo do vestido vermelho de esperas boas. Ah, as esperas boas!
Vocês me perguntam como e quando tudo começou. Só sei que vim de longe. Fui menina presa de cabelos presos, escuros e encaracolados, cachos presos, tudo preso. Era frágil, cheia de perebas e pomadas. Nunca dancei e o vestido vermelho, aquele, sempre ali, a me espreitar. Tanta expectativa pra um vestido. Ah, os vestidos!
Criança fui pouco. Cresci cedo, cinza, em ofício de lavar gim derramado em tábua escorrida, piso de granizo, digitais em vidraça de ver avião passar. Sã, só sim dizia pra eles. Contava segundos pra passar cartão ponto, fugir de jaula alta, gaiola de canário que não canta, exílio em cume e cada janela era trampolim em torre. Tropeço em corda bamba, queda livre. Espatifar inteira em meio fio era desejo. Ah, os desejos!
Tinha rachaduras nos calcanhares, cotovelos grossos, peles mortas, tudo morto. Topei em toco de pau seco na frente do barraco. Sangue no barro batido, tijolo, chão. Jorro, rasgo, escorrendo vida vermelha pelo canto do lábio na borda da única taça de plástico barato, sorrindo, ruminando a palavra amor. Ah, a palavra amor!
Mas forte é palavra não. Que leva a um limiar incandescente de liberdade que vocês chamam loucura. Que pega no beiço que bate em língua que voa no céu da boca, no chão da boca. A mesma que eles vomitaram raivas. Despejaram náusea e nada como se fosse tudo. E pra me tragarem, antiácido e espuma. Ah, a espuma!
Isso era coisa que fervia, servia pra eles me engolirem. Eu, que sempre me prendi, me matei, nunca dancei, resolvi ir todas as noites no forró. Pedi: me deixem entrar, me deixem errar, mesmo machucada. E bruxuleei de vestido vermelho e cabelos soltos. Declamei dignidades e alegrias em nome de todos esses anos vividos de sanidade e solidão. Ah, os anos de solidão!
Vocês me perguntam quem são eles. Só sei que enquanto estão lá em cima, olhando aviões, eu fiz pouso. Enquanto conspiram, eu lembro cada brilho de chão, cada mínima aresta de janela polida com orgulho. Orgulho de ter me rastejado, renascido remendada com ouro de esperas, vestidos vermelhos, desejos, amor e solidão. E nunca se esqueçam, que devo tudo a uma palavra. Ah, a palavra não!
Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices organizada por Rubem Penz
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